Revista Portuguesa de Investigação Comportamental e Social 2019 Vol. 6 (2): 39-55
Portuguese Journal of
Behavioral and Social Research 2019 Vol. 6 (2): 39-55
Departamento de Investigação & Desenvolvimento • Instituto
Superior Miguel Torga
ARTIGO ORIGINAL
Comportamentos ortoréticos e experiências de
vergonha: A sua relação e impacto no comportamento alimentar perturbado
Orthoretic behaviors and shame experiences:
Its relationship and impact on disordered eating
Patrícia Semião (1)
Sara Oliveira (1)
Cláudia
Ferreira (1)
(1) Faculdade de
Psicologia e de Ciências da Educação, Universidade de Coimbra, CINEICC, Portugal
Recebido: 09/07/2020; Revisto: 03/11/2020; Aceite: 11/11/2020.
https://doi.org/10.31211/rpics.2020.6.2.180
Objetivos:
O objetivo do
presente estudo foi testar o comportamento ortorético
(estilo atitudinal e comportamental que reflete uma preocupação
intensa e persistente com o consumo de alimentos saudáveis) enquanto
fator de risco para o desenvolvimento de comportamentos alimentares perturbados
e comportamentos de ingestão alimentar compulsiva. No Estudo 1 foram testadas
diferenças entre níveis moderados/severos e níveis baixos de comportamento
ortorético em relação às experiências de vergonha (geral e focada na imagem
corporal) e indicadores de comportamento alimentar perturbado (geral e
compulsão alimentar). No Estudo 2 foi testado um modelo teórico que hipotetiza a associação entre o comportamento ortorético,
vergonha geral e da imagem corporal como fatores de risco do comportamento
alimentar perturbado e da compulsão alimentar, em mulheres da população geral. Método: A amostra foi constituída por 307 mulheres da
população geral, com idades compreendidas entre 18 e 63 anos (M = 33,62 ± 11,73) que responderam a um protocolo online composto por medidas de autorresposta.
Resultados: As participantes com
níveis moderados/severos de comportamento ortorético revelaram níveis
significativamente superiores de vergonha geral, vergonha da imagem corporal,
comportamento alimentar perturbado e compulsão alimentar, comparativamente às
participantes com níveis baixos de comportamento ortorético. Os resultados da path analysis indicaram
que o comportamento ortorético, a vergonha geral e a vergonha da imagem
corporal explicam 51,0% da variância do comportamento alimentar perturbado e 47,0%
da variância da compulsão alimentar. Conclusões: O presente estudo sugere o comportamento ortorético como possível fator
de risco para o desenvolvimento de Perturbações do Comportamento Alimentar. Os
resultados deste estudo são importantes para a prática clínica, mostrando que
os comportamentos ortoréticos, apesar de serem muitas vezes considerados como
comportamentos socialmente aceitáveis, quando associados a experiências de
vergonha geral e da imagem corporal, podem contribuir para maior severidade dos
comportamentos alimentares perturbados, tanto do tipo restritivo como de
ingestão alimentar compulsiva.
Palavras-Chave: Comportamento ortorético; Vergonha
geral; Vergonha da imagem corporal; Comportamento alimentar perturbado;
Compulsão alimentar; Mulheres.
Objectives: The present study
aimed to explore orthoretic behaviors (an attitudinal and behavioral style that
reflects an intense and persistent concern with healthy foods consumption) as a
possible risk factor for developing disordered eating and binge eating behaviors.
In Study 1, differences between moderate/severe levels and lower levels of
orthoretic behaviors were tested concerning experiences of shame (general and
body-image focused) and disordered eating indicators (general and binge
eating). In Study 2, a theoretical model was tested in which it was
hypothesized the association between orthoretic behaviors, general shame, and
body-image as risk factors for disordered eating and binge eating in women from
the general population. Method: The sample consisted
of 307 women from the general population, aged between 18 and 63 years old (M = 33,62; DP = 11,73), who responded to an online protocol with a set of self-report
measures of orthoretic behaviors, general and body-image shame, disordered eating
and binge eating. Results: Participants with
moderate/severe levels of orthoretic behaviors revealed significantly higher
levels of general shame, body-image shame, disordered eating, and binge eating
when compared to participants with lower levels of orthoretic behaviors. The
path analysis results indicated that orthoretic behaviors, general shame, and
body-image shame explain 51.0% of the variance of disordered eating and 47.0%
of binge eating variance. Conclusions:
The
present study suggests orthoretic behaviors as a possible risk factor for Eating
Disorders' development. The present study's data is important for clinical
purposes, showing that orthoretic behaviors seem to contribute to greater
severity of disordered eating, both restrictive and binge eating types, despite
being considered socially acceptable behaviors associated with general
experiences and body-image shame.
Keywords: Orthoretic behaviors; General shame; Body-image shame; Disordered eating behaviors;
Binge eating; Women.
É unanimemente aceite que uma alimentação
saudável e o consumo consciente dos alimentos são comportamentos indispensáveis
na promoção da saúde e na prevenção da doença, assumindo ainda um papel central
no tratamento de inúmeras condições médicas (Kiss‑Leizer & Rigó, 2019). No entanto, é
importante sublinhar que a procura de uma alimentação saudável pode revelar contornos
patológicos, com repercussões negativas a nível do funcionamento físico,
psicológico e social (Coelho et al., 2016; Kiss‑Leizer & Rigó, 2019).
Ortorexia é o termo que deriva das palavras gregas orthos e orexis, que significam correto e apetite, respetivamente. O construto de Ortorexia
Nervosa é abordado pela primeira vez por Steven Bratman,
em 1997, para definir uma obsessão ou preocupação
intensa e persistente acerca do consumo de alimentos saudáveis. Esta
preocupação por uma alimentação “pura” ou saudável pode assumir-se como um
estilo atitudinal e comportamental especialmente
complexo (Koven & Abry, 2015),
que apresenta como caraterísticas centrais: o excessivo controlo em relação à
composição e às fontes de onde provêm os alimentos; um estilo rigoroso de
planeamento e preparação das refeições; assim como o cumprimento de regras
rígidas e específicas relativas ao padrão alimentar (e.g., valor nutricional,
horário das refeições e/ou cor específica dos alimentos que se devem ingerir; Bratman, 1997; Bratman & Knight,
2000; Kiss‑Leizer
& Rigó, 2019; Varga et
al., 2014). Os indivíduos que adotam estas atitudes e comportamentos face à
alimentação tendem a apresentar um sentimento de orgulho e superioridade
associado ao seu padrão alimentar e uma atitude crítica e de desaprovação face
a indivíduos que consideram não ter uma alimentação saudável (Bratman, 1997; Varga et al., 2014). De igual modo, estes indivíduos apresentam
uma atitude de autocrítica perante quaisquer infrações no seu plano alimentar
(e.g., ingestão de um alimento considerado não saudável), as quais se associam igualmente
a níveis severos de culpa e ansiedade; Bratman & Knight, 2000; Kiss‑Leizer & Rigó, 2019).
Os comportamentos ortoréticos (i.e., o
interesse e preocupação por uma alimentação saudável) não são por si só
considerados patológicos (Koven & Abry,
2015). Assim, o que torna estes comportamentos alimentares
patológicos é o seu caráter inflexível (i.e., quando são adotados de uma forma
rígida e obsessiva) e a sua associação a consequências físicas, psicológicas e
sociais nefastas para o indivíduo (e.g., desnutrição, sintomatologia ansiosa,
intenso isolamento social), justificando assim o termo de Ortorexia Nervosa
(Catalina Zamora et al., 2005; Moroze et al., 2015).
Apesar do interesse e investigação em relação
à Ortorexia Nervosa ter aumentado de forma exponencial nos últimos anos (Cuzzolaro & Donini, 2016),
até ao momento o conhecimento desta condição é ainda muito limitado (Varga et al., 2013). De facto, a Ortorexia Nervosa
é um conceito relativamente recente e a sua definição constitui ainda um
desafio (Cena et al., 2019). Adicionalmente, e embora o
caráter patológico desta condição seja unanimemente aceite, a Ortorexia Nervosa
não é ainda oficialmente reconhecida como uma perturbação psiquiátrica ou
mental, não estando atualmente descrita no DSM-5 (American Psychiatric Association, 2013) ou no CID-11 (World Health Organization, 2019). Dunn e Bratman (2016), numa proposta de operacionalização dos critérios de
diagnóstico de Ortorexia Nervosa, propuseram como critérios centrais: (1) foco
obsessivo ou patológico na alimentação saudável; (2) preocupação e
comportamento compulsivo com consequências clinicamente nocivas.
Bratman (1997) aponta a Ortorexia
Nervosa como uma possível nova perturbação alimentar e vários autores sublinham
que esta perturbação partilha caraterísticas com outras perturbações
alimentares (Barthels et al.,
2015; Segura-Garcia et al., 2015). Das
semelhanças entre a Ortorexia Nervosa e as Perturbações do Comportamento
Alimentar (como a Anorexia Nervosa e a Bulimia) destacam-se o controlo excessivo
em relação à alimentação, o qual assume um impacto severo a nível
biopsicossocial (Aranceta Bartrina,
2007; Brytek-Matera,
2012). No entanto, ao contrário do que acontece nas Perturbações do
Comportamento Alimentar, em que o foco de preocupação é o controlo do peso e/ou
imagem corporal através do controlo excessivo da quantidade de alimento
ingerido, os indivíduos com Ortorexia Nervosa estão concentrados no controlo da
qualidade dos alimentos e na necessidade de ingerir alimentos puros e saudáveis
(Brytek-Matera et al., 2015).
A relação entre Ortorexia Nervosa e
Perturbação do Comportamento Alimentar é controversa. Segundo alguns autores
(e.g., Barthels, et al.,
2018; Strahler et al.,
2018), os indivíduos que adotam uma alimentação perturbada caraterizada
pela restrição severa e/ou pela ocorrência de compulsão alimentar e
comportamentos purgativos apresentam maior risco de desenvolverem Ortorexia
Nervosa. Paralelamente, outros autores sugerem que a Ortorexia Nervosa pode
constituir um fator de risco no desenvolvimento de comportamentos alimentares
perturbados que, por sua vez, ao longo do tempo podem originar uma Perturbação
do Comportamento Alimentar (Mac Evilly,
2001; McComb & Mills, 2019). Assim, não é claro se é a adoção de
comportamentos alimentares perturbados que prediz a Ortorexia Nervosa, ou se
são os comportamentos ortoréticos que explicam o desenvolvimento de
comportamentos alimentares perturbados.
A literatura tem evidenciado que uma das
emoções mais fortemente associada com as Perturbações do Comportamento
Alimentar é a vergonha (e.g., Duffy
& Henkel, 2016). Investigação consistente tem
documentado altos níveis de vergonha em pacientes com uma Perturbação do
Comportamento Alimentar (e.g., Jambekar
et al., 2003; Troop et al.,
2008). No entanto, até ao momento, ainda não foi explorada a relação entre
a vergonha e comportamento ortorético. Neste sentido e dado que a Ortorexia
Nervosa partilha caraterísticas com as Perturbações do Comportamento Alimentar,
seria interessante, do ponto de vista da investigação, averiguar se existem
associações entre a vergonha e a Ortorexia Nervosa.
A vergonha é uma emoção dolorosa, universal e
complexa, que pode ser concetualizada como uma resposta defensiva ativada
quando o eu se perceciona sob ameaça social (i.e., de ser criticado,
humilhado, ostracizado ou rejeitado pelo grupo social; Gilbert,
2002). A literatura tem demonstrado a associação entre elevados níveis de
vergonha e o comprometimento do funcionamento geral (Dearing & Tangney, 2011), assim como com
diversas condições psicopatológicas (nomeadamente Depressão e Perturbação do
Comportamentos Alimentar; Matos & Pinto-Gouveia, 2010;
Ferreira et al., 2014).
A experiência de vergonha tem as suas origens
na interação eu-outro, e é ativada
quando o eu
acredita existir negativamente na mente dos outros, como um agente
social inferior, defeituoso, falhado ou pouco atrativo (vergonha externa).
Estas vivências emocionais podem ser internalizadas, dando origem a autoavaliações
negativas e a sentimentos de inadequação e inferioridade (vergonha interna; Gilbert, 2002). Estas avaliações negativas do eu (i.e., experiências de vergonha)
podem estar focalizadas em relação ao peso e aparência física (Dias et al., 2020; Duarte et al.,
2015b; Gilbert, 2002). A vergonha em relação à
imagem corporal envolve autoavaliações negativas do eu com base em determinadas caraterísticas ou atributos da
aparência física (e.g., tamanho, forma, peso do corpo), percecionados como
sendo avaliados pelos outros e pelo eu
como não atrativos e que colocam o indivíduo numa posição social vulnerável (Duarte et al., 2015b). A vulnerabilidade ou perceção
de ameaça associada à vergonha focada na imagem corporal (i.e., sentimento de
inferioridade, defeito e a perceção de perda de atratividade focada em
determinadas partes ou características do corpo ou da aparência física) parece
explicar a ativação de uma série de respostas atitudinais
e comportamentais defensivas (e.g., esconder, ocultar ou corrigir as falhas
percebidas na aparência física) (Duarte et al., 2015b).
O comportamento alimentar perturbado (e.g., através da rígida seleção ou
restrição de alimentos) pode ser, igualmente, compreendido como uma estratégia
defensiva para lidar com sentimentos de vergonha (Pinto-Gouveia
et al., 2014).
Assim, a presente investigação teve dois
objetivos. No primeiro objetivo pretendeu explorar-se em que medida as mulheres
que apresentam níveis moderados a severos de comportamento ortorético se
distinguiam em termos de vergonha geral, vergonha da imagem corporal,
comportamento alimentar perturbado e compulsão alimentar, relativamente às
mulheres com níveis baixos de comportamento ortorético (Estudo 1). O segundo
objetivo foi perceber em que medida a associação entre o comportamento
ortorético, vergonha geral e vergonha da imagem corporal explicam uma maior
severidade do comportamento alimentar perturbado e compulsão alimentar em
mulheres, quando controlado o Índice de Massa Corporal (Estudo 2).
Participantes
A amostra foi constituída
por 307 participantes do sexo feminino da população geral com idades entre 18 e
63 anos (M = 33,62; DP = 11,73) e uma média de 14,44 (DP = 3,10) anos de escolaridade. A
maioria das participantes era solteira (53,1%), 42% eram casadas ou estavam em
união de facto, e 4,9% eram divorciadas ou separadas. Em relação à área de
residência, 52,4% das participantes residia em área urbana, 23,1% em área semiurbana
e 24,4% em área rural. No que diz respeito ao regime alimentar, a maioria das
participantes reportou ter um regime omnívoro (90,6%), 7,2% um regime
vegetariano, 1,3% um regime vegano e 1,0% um regime paleo. O Índice de Massa
Corporal (IMC) das participantes variou entre 17,21 e 40,89 (M = 24,25; DP = 4,62). A distribuição do IMC das participantes na amostra em estudo
refletiu a distribuição normal em mulheres adultas da população portuguesa (Poínhos et al., 2009).
Instrumentos
O protocolo de avaliação foi composto por um
questionário sociodemográfico (e.g., idade, sexo, anos de escolaridade, área de
residência, estado civil, regime alimentar e altura e peso atual) e as
seguintes medidas de autorresposta.
Índice de Massa Corporal (IMC)
O IMC foi calculado
com base no índice de Quetelet (Kg/m2)
através dos autorrelatos do peso e altura atual dos participantes.
Düsseldorfer Orthorexie Skala (DOS)
A DOS é uma medida
de autorresposta que visa avaliar o comportamento ortorético (Barthels et al., 2015a;
versão portuguesa de Ferreira & Coimbra,
2020). Esta escala é composta por dez itens avaliados numa escala Likert de
quatro pontos (1 = “não se aplica a mim” a 4 = “aplica-se a mim”), tendo como
valor mínimo dez pontos e máximo 40 pontos. Pontuações superiores nesta medida
traduzem maior gravidade de comportamento ortorético. A DOS apresenta boas
qualidades psicométricas com um alfa de Cronbach de 0,84 para a versão original
(Barthels et al., 2015a),
assim como na versão portuguesa 0,86 (Ferreira
& Coimbra, 2020). No presente estudo o alfa de Cronbach foi de 0,87.
Body Image Shame Scale (BISS)
A BISS (Duarte et al., 2015) é uma medida de
autorrelato composta por catorze itens que avaliam a vivência de vergonha em
relação à imagem corporal. É constituída por duas subescalas: vergonha corporal
externa [e.g., “Evito situações sociais (por exemplo, saídas, festas) por causa
da minha aparência física”) e vergonha corporal interna (e.g., “Incomoda-me ver
o meu corpo despido”)]. Os participantes são convidados a responderem a cada
item, numa escala de cinco pontos (de 0 = “Nunca” a 4 = “Quase sempre”), de
acordo com a frequência com que experienciam vergonha em relação à sua imagem
corporal. A BISS apresenta boas propriedades psicométricas (α = 0,92; Duarte et
al., 2015). Para o presente estudo o alfa de Cronbach foi de 0,95.
External and Internal Shame Scale (EISS)
A EISS (Ferreira
et al., 2020) é composta por oito itens que avaliam o sentimento global da
experiência de vergonha, tendo por base quatro domínios centrais
(inferioridade/inadequação, senso de exclusão, inutilidade/vazio e crítica/julgamento).
A escala é composta por duas dimensões (com 4 itens cada): vergonha externa
(e.g., “Sinto que as outras pessoas me veem como se eu não estivesse à altura
delas”) e vergonha interna (e.g., “Sinto que sou crítica em relação a mim
(julgo-me negativamente)”. É solicitado que os participantes respondam a cada
item de acordo com a sua experiência de vergonha, numa escala Likert de cinco
pontos (0 = “Nunca” a 4 = “Sempre”). Pontuações mais altas refletem uma maior
experiência de vergonha. A escala apresenta boas propriedades psicométricas,
com um alfa de Cronbach de 0,89 (Ferreira et al.,
2020). No presente estudo o alfa de Cronbach foi de 0,94.
Eating Disorder Examination Questionnaire (EDE-Q)
O EDE-Q (Fairburn & Beglin, 1994; versão
portuguesa de Machado et al., 2014) é um
questionário de autorrelato baseado na Eating Disorder Examination (Fairburn & Cooper, 1993)
que avalia atitudes e comportamentos alimentares perturbados. Composto por
quatro subescalas (restrição, preocupação com a comida, preocupação com o peso
e preocupação com a forma), é constituído por 36 itens que avaliam a frequência
e severidade das atitudes e comportamentos alimentares perturbados, nos últimos
28 dias. Os itens de 1 a 15 avaliam a frequência da ocorrência e são
respondidos numa escala Likert de sete pontos (0 = “Nada” a 6 = “Todos os
dias”), e os itens 29 a 36 avaliam a severidade dos sintomas numa escala Likert
de sete pontos (0 = “Nada” a 6 = “Extremamente”). Este instrumento apresentou
boas propriedades psicométricas, tanto na versão original (Fairburn & Beglin, 1994) como na
versão portuguesa (α de Cronbach = 0,94; Machado et al.,
2014), com as subescalas a apresentarem valores entre 0,72 e 0,92 (Machado et al., 2014). No presente estudo os alfas de
Cronbach foram de 0,95 para a escala global e de 0,85, 0,85, 0,82 e 0,92 para
as subescalas restrição, preocupação com a comida, preocupação com o peso e
preocupação com a forma, respetivamente.
Binge Eating Scale (BES)
A BES (Gormally et al., 1982; versão portuguesa de Duarte et al., 2015a) é composta por 16 itens que
avaliam sintomas associados à ingestão alimentar compulsiva, como a ingestão de
grandes quantidades de alimentos, sentimentos ou cognições de culpa e a
sensação de descontrolo que precedem ou seguem uma compulsão alimentar. Cada um
dos itens compreende três a quatro afirmações que são opções e que traduzem
diferentes níveis de gravidade. Os participantes são solicitados a selecionar a
afirmação que mais corresponde à sua experiência. As pontuações da escala
variam entre zero a 46 pontos, com as mais altas a indicar maior severidade da
ingestão compulsiva. A BES apresenta boas qualidades psicométricas com um alfa
de Cronbach de 0,85 no estudo original (Gormally et al., 1982) e de 0,88 na versão portuguesa
(Duarte et al., 2015a). Para o presente estudo,
o alfa de Cronbach foi de 0,90.
Procedimento
O presente estudo fez parte de uma
investigação mais alargada acerca do estudo da ortorexia, regulação emocional e
comportamento alimentar. Previamente à recolha da amostra, realizada no período entre outubro de 2019 e janeiro de
2020, o presente estudo foi aprovado pela comissão de ética da Faculdade de
Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Coimbra. O convite à
participação na presente investigação foi divulgado através de diferentes redes
sociais (Instagram e Facebook). Este
convite incluía informação detalhada acerca dos objetivos e procedimentos do
estudo, população alvo, e o caráter anónimo e confidencial da participação.
Este convite incluía ainda um link que direcionava os potenciais
participantes para a versão online do
protocolo de investigação, constituído por uma recolha de dados
sociodemográficos e informação acerca do peso, altura e padrão alimentar.
Previamente ao preenchimento do protocolo, foi requerido o consentimento
informado a todos os participantes. Os critérios de inclusão no presente estudo
foram: (i) ser do sexo feminino (ii)
possuir idade igual ou superior a 18 anos e inferior a 65 anos; e (iii) domínio da língua portuguesa. A amostra inicial
foi composta por 561 indivíduos. Porém, levando em consideração os critérios de
inclusão referidos, foram excluídos 254 participantes que não cumpriam os
requisitos para participar na investigação.
Estratégia Analítica
A análise de dados
foi realizada através do IBM SPSS Statistics
22.0 (SPSS IBM) e AMOS 22 (Arbuckle,
2013). De modo a explorar as caraterísticas da amostra foram
elaboradas estatísticas descritivas (médias, desvios-padrão).
No Estudo 1,
de modo a averiguar as diferenças entre participantes com níveis moderados a
severos e participantes com níveis baixos de comportamento ortorético, foram
formados dois grupos com base no ponto de corte da DOS (Chard, et al., 2019). Neste sentido, as
participantes que apresentaram valores iguais ou superiores a 25 pontos nesta
escala integraram o grupo de níveis moderados a severos de comportamento
ortorético (Grupo DOS ≥ 25). Para a constituição de um grupo de comparação foi aleatorizado, a partir da amostra total, um grupo de 49
participantes que apresentaram valores inferiores a 25 pontos na mesma medida
(Grupo DOS < 25). De seguida, foram realizados testes qui-quadrado e t de Student para
amostras independentes de modo explorar as diferenças entre os dois grupos nas
variáveis demográficas e nas medidas de autorresposta em estudo. Os tamanhos
dos efeitos foram examinados com base nas diretrizes de Cohen (efeito pequeno: d ≥ 0,20; efeito médio: d ≥ 0,50 e efeito grande: d ≥ 0,80; Cohen,
1998) e de Cramer (efeito pequeno: V ≥ 0,10; efeito médio: V ≥ 0,30 e; efeito grande: V ≥ 0,50; Cohen,
1998).
Com o objetivo de
testar em que medida a associação entre o comportamento ortorético, vergonha
geral e vergonha da imagem corporal explicam uma maior severidade do
comportamento alimentar perturbado e de compulsão alimentar (Estudo 2)
foram realizadas análises de correlação de Pearson. As magnitudes dessas
associações foram examinadas com base nas recomendações de Cohen e
colaboradores (2003), nas quais correlações
compreendidas entre 0,1 e 0,3 são consideradas fracas, acima de 0,3 moderadas,
e iguais ou superiores a 0,5 fortes, considerando um nível de significância de
0,05.
Por último, através
do software AMOS 22 foram realizadas
análises de vias (path analysis)
para examinar a adequabilidade do modelo proposto. Foi utilizado o método de
Máxima Verossimilhança para verificar a significância dos coeficientes da path. Os efeitos
diretos determinados entre as variáveis foram testados a partir de Bootstrap resampling (com
5000 amostras), com um intervalo de confiança (IC) corrigido de 95% (bias-corrected confidence intervals).
Análises Preliminares
Foram realizadas
análises de assimetria (Sk)
e de curtose (Ku).
Os resultados mostraram que os valores de assimetria variaram entre 0,91 (BISS)
e 1,57 (BES) e os valores de curtose variaram entre -0,11 (BISS) e 2,55 (BES).
Neste sentido, os valores encontrados admitem a assunção do pressuposto da
normalidade da distribuição dos dados (|Sk| < 3; |Ku| < 10), tendo por base as recomendações de Kline (2005).
Estudo 1
O principal
objetivo do Estudo 1 foi testar em que medida as participantes que
apresentaram níveis moderados a severos de comportamento ortorético se distinguiam
das participantes que apresentaram níveis baixos de comportamento ortorético no
que concerne à vergonha geral experienciada, à vergonha em relação à imagem
corporal, aos comportamentos alimentares perturbados e aos comportamentos de
compulsão alimentar.
Num primeiro passo,
foram analisadas as diferenças entre os dois grupos no que concerne às
variáveis sociodemográficas. Os resultados evidenciaram que o grupo das
participantes com níveis moderados a severos de comportamento ortorético (DOS ≥
25, n = 37) e o grupo de participantes com níveis baixos de comportamento
ortorético (DOS < 25, n = 49) não apresentaram diferenças estatisticamente
significativas nas variáveis sociodemográficas consideradas: idade (t(84) = -0,12, p = 0,905, d de Cohen = 0,03); anos de escolaridade (t(84) = -1,18, p
= 0,243, d de Cohen = 0,26); IMC (t(84) = -0,88, p = 0,384, d de Cohen = 0,19); área de residência (χ2(2) =
4.49, p = 0,106, V de Cramer = 0,23); estado civil (χ²(2) = 0,26, p = 0,877, V de Cramer = 0,06); e regime alimentar
(χ²(2) = 2,06, p = 0,358, V de Cramer = 0,16).
Relativamente às
variáveis em estudo, o grupo que apresentou níveis moderados a severos de
comportamento ortorético (DOS ≥ 25) reportou níveis significativamente mais
elevados de vergonha geral (EISS), vergonha da imagem corporal (BISS),
comportamento alimentar perturbado (avaliado através do score global da EDE-Q e das suas subescalas) e de compulsão
alimentar (BES), comparativamente com o grupo que apresentou níveis baixos de
comportamento ortorético (DOS < 25). A análise das diferenças entre os dois
grupos mostrou tamanhos de efeitos médios a grandes (Tabela
1).
|
Diferenças Entre
Participantes com Níveis Moderados a Severos de Comportamento Ortorético (Grupo
DOS ≥ 25) e Participantes com Níveis Baixos de Comportamento Ortorético (Grupo
DOS < 25) |
|
|||||||||
|
|
|
|
|
t |
gl |
p |
d |
|
||
|
|
M |
DP |
|
M |
DP |
|
||||
|
EISS |
11,27 |
8,46 |
|
6,53 |
6,50 |
-2,94 |
84 |
0,004 |
0,63 |
|
|
BISS |
18,89 |
14,23 |
|
12,39 |
10,05 |
-2,37 |
61,64 |
0,021 |
0,53 |
|
|
EDE-Q-total |
2,10 |
1,32 |
|
0,91 |
1,03 |
-4,53 |
66,06 |
< 0,001 |
1,00 |
|
|
EDE-Q-restrição |
2,22 |
1,80 |
|
0,62 |
0,89 |
-4,95 |
49,21 |
< 0,001 |
1,12 |
|
|
EDE-Q-preoccomida |
1,27 |
1,30 |
|
0,46 |
0,82 |
-3,32 |
57,23 |
0,002 |
0,74 |
|
|
EDE-Q-preocpeso |
2,29 |
1,59 |
|
1,18 |
1,37 |
-3,39 |
70,89 |
0,001 |
0,75 |
|
|
EDE-Q-preocforma |
2,61 |
1,75 |
|
1,37 |
1,43 |
-3,53 |
68,37 |
0,001 |
0,78 |
|
|
BES |
12,19 |
8,78 |
|
5,80 |
6,18 |
-3,96 |
84 |
< 0,001 |
0,84 |
|
|
Nota.
DOS = Düsseldorfer Orthorexie
Skala; EISS = External
and Internal Shame Scale; BISS= Body Image Shame Scale;
EDE-Q = Eating Disorder
Examination Questionnaire
– score global e subescalas (restrição; preocupação com a comida;
preocupação com o peso e preocupação com a forma); BES = Binge
Eating Scale; M =
Média; DP = Desvio-Padrão; t = Teste t de Student; gl = Graus de liberdade; p = Nível de
significância; d = d de Cohen. |
|
Estudo 2
O Estudo 2 teve
como objetivo testar em que medida a associação entre os comportamentos
ortoréticos, vergonha geral e vergonha da imagem corporal, explicavam uma maior
severidade do comportamento alimentar perturbado e de compulsão alimentar,
considerando a amostra total constituída por 307 mulheres.
Análise Correlacional
Os resultados das análises de correlação (Tabela 2)
permitiram verificar que o comportamento ortorético (DOS) se associa
positivamente com a vivência de vergonha geral (EISS) e focada na imagem
corporal (BISS), com magnitude fraca, assim como, com o comportamento alimentar
perturbado (EDE_Q), com magnitude moderada e a compulsão alimentar (BES), com
magnitude fraca. Verificou-se, igualmente, uma associação positiva forte entre
vergonha geral e vergonha da imagem corporal. Por sua vez, a
vergonha geral e focada na imagem corporal revelaram estar
correlacionadas positivamente com o comportamento alimentar perturbado (com
magnitudes moderada e forte, respetivamente) e com a compulsão alimentar (ambas
com magnitude forte). O comportamento alimentar perturbado apresentou uma
correlação positiva forte com a compulsão alimentar. Por fim, o IMC apresentou
associações positivas e significativas com todas as variáveis em estudo, à
exceção do comportamento ortorético, com o qual não foi encontrada uma
associação significativa.
|
Médias (M),
Desvios-Padrão (DP) e Valores de Correlações entre as Variáveis em Estudo (N =
307) |
|
||||||||
|
|
M |
DP |
1 |
2 |
3 |
4 |
5 |
6 |
|
|
1. DOS |
17,00 |
11,42 |
— |
0,16** |
0,22*** |
0,34*** |
0,24*** |
0,11 |
|
|
2. EISS |
7,34 |
7,13 |
— |
0,67*** |
0,49*** |
0,54*** |
0,16** |
|
|
|
3. BISS |
13,18 |
11,42 |
— |
0,63*** |
0,63*** |
0,39*** |
|
||
|
4. EDE-Q |
1,22 |
1,19 |
— |
0,68*** |
0,46*** |
|
|||
|
5. BES |
7,37 |
7,61 |
|
|
|
|
— |
0,40*** |
|
|
6. IMC |
24,25 |
4,62 |
— |
|
|||||
|
Nota.
DOS = Düsseldorfer Orthorexie Skala; EISS = External and Internal Shame
Scale; BISS= Body Image Shame Scale; EDE-Q = Eating Disorder
Examination Questionnaire; BES = Binge Eating Scale; IMC = Índice de Massa Corporal. **p
< 0,01; ***p < 0,001. |
|
Análise de vias (Path Analysis)
Através de uma análise de vias (path
analysis) foi testada a associação entre
comportamento ortorético (DOS), vergonha geral (EISS) e vergonha da imagem
corporal (BISS), consideradas como variáveis independentes, e a adoção de
comportamento alimentar perturbado (EDE-Q) e compulsão alimentar (BES),
consideradas como variáveis dependentes, quando controlado o efeito do IMC.
O modelo foi testado através de um modelo saturado (isto é, com zero
graus de liberdade) constituído por 27 parâmetros. O modelo apresentou um
ajustamento perfeito aos dados, apresentando todas as vias (paths)
significativas.
Os resultados demonstraram que o comportamento ortorético revelou um
efeito direto no comportamento alimentar perturbado (β = 0,21; bDOS = 0,04; SEb =
0,01; Z = 5,04; p < 0,001) e na compulsão alimentar (β = 0,10;
bDOS = 0,13; SEb
= 0,05; Z = 2,40; p = 0,016). A vergonha geral revelou um efeito
direto no comportamento alimentar perturbado (β = 0,18; bEISS
= 0,03; SEb = 0,01; Z = 3,23; p <
0,001) e na compulsão alimentar (β = 0,26; bEISS
= 0,28; SEb = 0,06; Z = 4,64; p <
0,001). Adicionalmente, a vergonha da imagem corporal apresentou um efeito
direto no comportamento alimentar perturbado (β = 0,36; bBISS
= 0,28; SEb = 0,01; Z = 6,11; p <
0,001) e na compulsão alimentar (β = 0,34; bBISS
= 0,23; SEb = 0,04; Z = 5,57; p <
0,001). Por último, o IMC revelou um efeito direto no comportamento alimentar
perturbado (β = 0,27; bIMC = 0,07; SEb = 0,01; Z = 6,22; p < 0,001) e
na compulsão alimentar (β = 0,22; bIMC = 0,36;
SEb = 0,08; Z = 4,83; p <
0,001).
O modelo revelou explicar 51% e 47% das variâncias do comportamento
alimentar perturbado e da compulsão alimentar, respetivamente (Figura 1).
Figura 1
Modelo da Análise de Vias (Path Analysis) (clique para
abrir)
Discussão e Conclusão
A literatura tem sublinhado a importância de um maior investimento na
investigação no âmbito da Ortorexia Nervosa (Cena et al., 2019). De facto, embora o interesse e a produção
científica em relação à Ortorexia Nervosa tenham crescido de forma exponencial
nos últimos anos (Cuzzolaro
& Donini, 2016), o
conhecimento acerca da definição, etiologia e do impacto do comportamento
ortorético é, ainda, muito limitado (Cena et al.,
2019; Varga
et al., 2013).
A presente investigação teve como principal objetivo clarificar se o
comportamento ortorético se associa a um aumento de risco do comportamento
alimentar perturbado e de compulsão alimentar. Assim, num primeiro estudo (Estudo
1) pretendeu averiguar-se se existiam diferenças entre mulheres que reportam
níveis moderados a severos de comportamento ortorético e mulheres com níveis
baixos de comportamento ortorético em relação às experiências de vergonha
(geral e focada na imagem corporal) e em indicadores de comportamento alimentar
perturbado (geral e compulsão alimentar). Num segundo estudo (Estudo 2), foi
testado um modelo teórico no qual foi hipotetizado
que é a associação entre o comportamento ortorético, a vergonha geral e a
vergonha da imagem corporal, que explica uma maior severidade no comportamento
alimentar perturbado e na compulsão alimentar nas mulheres da população geral.
No que concerne ao estudo das diferenças entre mulheres com valores
superiores (DOS ≥ 25) e inferiores (DOS < 25) de comportamento ortorético,
os resultados mostraram a existência de diferenças significativas. Os dados
revelaram que as mulheres da população geral que reportaram níveis moderados a
severos de comportamento ortorético apresentaram níveis superiores de vergonha
geral e de vergonha da imagem corporal, assim como maior severidade do
comportamento alimentar perturbado e de compulsão alimentar, quando comparadas
com mulheres com níveis baixos de comportamento ortorético. Os resultados
parecem apoiar a hipótese de que o comportamento ortorético, quando assume
níveis moderados a severos, representa um possível fator de risco para o
desenvolvimento de uma perturbação do comportamento alimentar (Mac
Evilly, 2001).
A fim de explorar a relação entre comportamento ortorético, vergonha
geral, vergonha focada na imagem corporal, comportamento alimentar perturbado e
ingestão alimentar compulsiva foram realizadas análises de correlação de
Pearson numa amostra de mulheres da população geral. Em consonância com os
resultados do Estudo 1, os resultados revelaram que o comportamento ortorético
se associa de forma positiva a maiores níveis de vergonha (tanto geral como
focada na imagem corporal) e maior severidade dos comportamentos alimentares
perturbados e de ingestão alimentar compulsiva. Estes dados parecem estender a
investigação no âmbito da ortorexia nervosa, uma vez que do nosso conhecimento
este é o primeiro estudo que explora a relação entre estes comportamentos e a
vivência de vergonha. Estes resultados estão igualmente em consonância com
estudos prévios (Barthels, et al.,
2018; Strahler et al., 2018), corroborando a associação entre a
preocupação extrema com a alimentação saudável (comportamento ortorético) e
níveis mais severos de comportamento alimentar perturbado (tanto do tipo
restritivo como de ingestão alimentar compulsiva).
Com base nestes dados foi testado, através de uma path
analysis, um modelo teórico no qual se hipotetiza que a relação entre o comportamento ortorético
com a vivência de experiências de vergonha geral e focada na imagem corporal
assume um impacto positivo na adoção de comportamentos alimentares perturbados
e na compulsão alimentar. O modelo teórico
testado apresentou uma adequação perfeita aos dados, explicando 51,0% da
variância do comportamento alimentar perturbado e 47,0% da variância da
compulsão alimentar. Estudos recentes defendem que as mulheres com ortorexia
nervosa tendem a ter uma relação de orgulho com os seus corpos, querendo até
mostra-los aos outros (Barthels et al., 2017). No
entanto, os resultados do presente estudo sugerem que, em mulheres da população
geral, a adoção de comportamentos ortoréticos (i.e., de um estilo atitudinal e comportamental que traduz uma preocupação
intensa e persistente com uma alimentação saudável), quando associados à
vivência de experiências de inferioridade ou inadequação em termos gerais e
focadas na imagem corporal, explicam níveis mais severos de comportamento
alimentar perturbado, tanto do tipo restritivo como de compulsão alimentar.
Estes resultados devem ser examinados considerando algumas limitações.
Uma das limitações principais prende-se com a natureza transversal do estudo,
não sendo possível retirar conclusões de causalidade entre as variáveis.
Futuramente, outros estudos devem aferir estes resultados recorrendo a estudos
longitudinais. Relativamente à generalização dos resultados, esta pode estar
limitada, dado que a amostra do estudo é constituída apenas por mulheres. De
forma a ultrapassar esta limitação, futuros estudos deverão incluir homens da
população geral, de modo a assegurar uma amostra mais representativa. A
utilização exclusiva de medidas de autorresposta também surge como limitação,
uma vez que poderão enviesar os resultados devido ao seu carácter subjetivo. A
utilização de entrevistas, em investigações futuras, surge como uma possível
solução para testar a plausibilidade dos resultados. No entanto, o caráter online
da investigação pode ter permitido que as participantes respondessem de forma
mais honesta, transmitindo segurança e anonimidade.
Em conclusão, o presente estudo sugere que os comportamentos
ortoréticos surgem como possíveis fatores de risco para o desenvolvimento de
comportamentos alimentares perturbados, tanto do tipo restritivo como do tipo
ingestão alimentar compulsiva, ao demonstrar que as mulheres com níveis
moderados a severos de comportamento ortorético tendem a experienciar níveis
superiores de vergonha geral e vergonha da imagem corporal, comparativamente às
mulheres com níveis baixos de comportamento ortorético. Adicionalmente, os
resultados fornecem novos dados à investigação, demonstrando pela primeira vez
uma associação entre os comportamentos ortoréticos e a experiência de vergonha
(tanto geral como focada na imagem corporal). Paralelamente, a associação positiva
entre os comportamentos ortoréticos e as experiências de vergonha parece
explicar de forma substancial a adoção de comportamentos alimentantes
perturbados e ingestão alimentar compulsiva nas mulheres da população geral. Estes resultados são importantes para a prática clínica ao
mostrar que os comportamentos ortoréticos, apesar de serem muitas vezes
considerados como comportamentos socialmente aceitáveis (Brytek-Matera
& Donini, 2018), devem ser foco de avaliação em contexto clínico de modo a permitir
uma sinalização precoce de níveis moderados a extremos destes comportamentos.
De facto, os resultados sugerem que os comportamentos ortoréticos devem merecer
atenção clínica, na medida em que se podem assumir como um comportamento de
risco para o desenvolvimento de Perturbações do Comportamento Alimentar,
especialmente quando se associam a uma vivência vergonha geral e da imagem
corporal. Paralelamente, estes resultados reforçam a pertinência de
intervenções focadas na compaixão para a diminuição do impacto das experiências
de vergonha no comportamento alimentar perturbado, quer de cariz restritivo
quer de natureza compulsiva (Ferreira et al., 2014; Pinto-Gouveia et al., 2014).
Espera-se que este estudo seja um ponto de partida para outras
possíveis investigações, a fim de perceber melhor a associação entre o
comportamento ortorético e as experiências de vergonha (geral e focada na
imagem corporal) e manter alerta os profissionais de saúde para a possibilidade
de a ortorexia nervosa ser uma forma mal adaptativa de lidar com sentimentos de
vergonha.
American Psychiatric Association. (2013). Diagnostic
and statistical manual of mental disorders (5ª ed). https://doi.org/10.1176/appi.books.9780890425596
Aranceta Bartrina, J. (2007). Ortorexia o la obsesión por la dieta saludable
TT [Orthorexia or when a
healthy diet becomes an obsession]. Archivos Latino Americanos de Nutrición, 57(4), 313–315. http://www.scielo.org.ve/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0004-06222007000400002&lang=pt
Arbuckle, J. L.
(2013). IBM SPSS Amos 22: User's guide. IBM SPSS.
Barthels,
F., Meyer, F., & Pietrowsky, R. (2015a). Die Düsseldorfer Orthorexie Skala-Konstruktion und evaluation eines
fragebogens zur erfassung ortho-rektischen ernährungsverhaltens [Duesseldorf orthorexia
scale-construction and evaluation of a questionnaire measuring orthorexia
eating behavior]. Zeitschrift für Klinische Psychologie
und Psychotherapie, 44(2), 97–105.
https://doi.org/10.1026/1616-3443/a000310
Barthels,
F., Meyer, F., & Pietrowsky, R. (2015b). Orthorexic eating behavior. A new type of disordered
eating. Ernahrungs Umschau,
62(10), 156–161. https://doi.org/10.4455/eu.2015.029
Barthels, F., Meyer, F., Huber, T., & Pietrowsky, R. (2017). Orthorexic
eating behaviour as a coping strategy in patients
with anorexia nervosa. Eating and Weight Disorders, 22(2), 269–276.
https://doi.org/10.1007/s40519-016-0329-x
Barthels,
F., Meyer, F., & Pietrowsky, R. (2018). Orthorexic and restrained eating behaviour
in vegans, vegetarians, and individuals on a diet. Eating and Weight
Disorders, 23, 159–166. https://doi.org/10.1007/s40519-018-0479-0
Bratman, S. (1997).
Health food junkie. Yoga journal (October). https://www.beyondveg.com/bratman-s/hfj/hf-junkie-1a.shtml
Bratman, S., & Knight,
D. (2000). Health food junkies. Orthorexia nervosa. Overcoming the obsession
with healthful eating. Broadway Books.
Brytek-Matera, A. (2012). Orthorexia nervosa - An
eating disorder, obsessive-compulsive disorder or disturbed eating habit? Archives
of Psychiatry and Psychotherapy, 14(1), 55–60. https://bit.ly/38z9i0Y
Brytek-Matera, A., & Donini,
L. M. (2018). Orthorexia nervosa and body image. Em Cuzzolaro M. & Fassino S.
(Eds.), Body image, eating, and weight (pp. 167–171). Springer. https://doi.org/10.1007/978-3-319-90817-5_12
Brytek-Matera, A., Rogoza,
R., Gramaglia, C., & Zeppegno,
P. (2015). Predictors of orthorexic behaviours in patients with eating disorders: A preliminary
study. BMC Psychiatry, 15(1), 1–9.
https://doi.org/10.1186/s12888-015-0628-1
Catalina Zamora, M.
L., Bote Bonaechea, B.,
García Sánchez, F., & Ríos Rial, B. (2005). Ortorexia nerviosa.
Un nuevo trastorno de la conducta
alimentaria? [Orthorexia nervosa. A new
eating behavior disorder?]. Actas Espanolas de Psiquiatria, 33(1), 66–68.
http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/15704033
Cena, H., Barthels, F., Cuzzolaro, M., Bratman, S., Brytek-Matera, A., Dunn, T.,
Varga, M., Missbach, B., & Donini,
L. M. (2019). Definition and
diagnostic criteria for orthorexia nervosa: A narrative review of the
literature. Eating and Weight Disorders, 24, 209-246.
https://doi.org/10.1007/s40519-018-0606-y
Chard, C. A., Hilzendegen, C., Barthels, F.,
& Stroebele-Benschop, N. (2019). Psychometric
evaluation of the English version of the Düsseldorf Orthorexie
Scale (DOS) and the prevalence of orthorexia nervosa among a U.S. student
sample. Eating and Weight Disorders, 24(2), 275–281. https://doi.org/fhsc
Coelho, G. C, Troglio, G. M., Hammes, L., Galvão, T. D., & Cyrino, L.
A. R. (2016). As consequências físicas, psíquicas e sociais em
indivíduos com ortorexia nervosa [The physical, psychic and social consequences on people with
orthorexia nervous]. Revista
Brasileira de Obesidade, Nutrição e Emagrecimento, 10(57), 160–168. https://bit.ly/3nfhck1
Cohen, J. (1988).
Statistical power analysis for the behavioral sciences (2ª ed.). Lawrence
Erlbaum Associates.
Cohen, J., Cohen,
P., West, S. G., & Aiken, L. S. (2003). Applied multiple regression/correlation
analysis for the behavioral sciences (3ª ed.). Lawrence Erlbaum Associates.
Cuzzolaro,
M., & Donini, L. M. (2016). Orthorexia nervosa by
proxy? Eating and Weight Disorders, 21(4), 549–551.
https://doi.org/10.1007/s40519-016-0310-8
Dearing, R. L.,
& Tangney, J. P. (Eds.). (2011). Shame in the therapy hour. American Psychological Association. https://doi.org/10.1037/12326-000
Dias, B. S.,
Ferreira, C., & Trindade, I. A. (2020). Influence of fears of compassion on
body image shame and disordered eating. Eating and Weight Disorders, 25(1),
99–106. https://doi.org/10.1007/s40519-018-0523-0
Duarte, C., Pinto-Gouveia, J., & Ferreira,
C. (2015a). Expanding binge
eating assessment: Validity and screening value of the Binge Eating Scale in
women from the general population. Eating Behaviors, 18, 41–47.
https://doi.org/10.1016/j.eatbeh.2015.03.007
Duarte, C., Pinto-Gouveia, J., Ferreira, C.,
& Batista, D. (2015b). Body
image as a source of shame: A new measure for the assessment of the
multifaceted nature of body image shame. Clinical Psychology and
Psychotherapy, 22(6), 656–666. https://doi.org/10.1002/cpp.1925
Duffy, M. E., &
Henkel, K. E. (2016). Non-specific terminology: Moderating shame and guilt in
eating disorders. Eating Disorders, 24(2), 161–172.
https://doi.org/10.1080/10640266.2015.1027120
Dunn, T. M., &
Bratman, S. (2016). Eating behaviors on orthorexia nervosa: A review of the
literature and proposed diagnostic criteria. Eating Behaviors, 21,
11–17. https://doi.org/10.1016/j.eatbeh.2015.12.006
Fairburn,
C. G., & Beglin, S. J. (1994). Assessment of eating
disorders: Interview or self-report questionnaire? International Journal of
Eating Disorders, 16(4), 363–370. https://doi.org/10.1002/1098-108X(199412)16:4<363::AID EAT2260160405>3.0.CO;2-%23
Fairburn,
C. G., & Cooper, Z. (1993). The Eating Disorder Examination. Em C. G. Fairburn & G. T. Wilson (Eds.), Binge
eating: Nature, assessment and treatment (12ª ed., pp. 317–360). Guilford
Press.
Ferreira,
C., & Coimbra, M. (2020). To further understand Orthorexia Nervosa: DOS
validity for the Portuguese population and its relationship with psychological
indicators, sex, BMI and dietary pattern. [Manuscript submitted for
publication]. Faculdade de Psicologia
e Ciências da Educação, Universidade de Coimbra.
Ferreira, C., Matos, M., Duarte, C., & Pinto-Gouveia, J. (2014). Shame memories and eating psychopathology: The
buffering effect of self-compassion. European Eating Disorders Review, 22(6),
487–494. https://doi.org/10.1002/erv.2322
Ferreira, C., Moura-Ramos,
M., Matos, M., & Galhardo, A. (2020). A new measure to assess external and internal
shame: Development, factor structure and psychometric properties of the
External and Internal Shame Scale. Current Psychology.
https://doi.org/10.1007/s12144-020-00709-0
Gilbert, P. (2002).
Body shame: A biopsychosocial conceptualisation and
overview with treatment implications. Em P. Gilbert,
& J. Miles (Eds.), Body shame: Conceptualisation,
research and treatment (pp. 3-54). Brunner Routledge.
Gormally,
J., Black, S., Daston, S., & Rardin,
D. (1982). The assessment of binge eating severity among obese persons. Addictive
Behaviors, 7(1), 47–55. https://doi.org/10.1016/0306-4603(82)90024-7
Jambekar,
S. A., Masheb, R. M., & Grilo,
C. M. (2003). Gender differences in shame patients with binge eating disorder. Obesity
Research, 11(4), 571–577. https://doi.org/10.1038/oby.2003.80
Kiss-Leizer, M., & Rigó, A.
(2019). People behind unhealthy obsession to healthy food: The personality
profile of tendency to orthorexia nervosa. Eating and Weight Disorders, 24(1),
29–35. https://doi.org/10.1007/s40519-018-0527-9
Kline, R. B.
(2005). Principles and practice of structural equation modelling (3ª
ed.). Guilford Press.
Koven, N. S. & Abry,
A. W. (2015). The clinical basis of orthorexia nervosa: Emerging perspectives. Neuropsychiatric
Disease and Treatment, 11, 385-394. https://doi.org/10.2147/NDT.S61665
Mac Evilly, C. (2001). The price of perfection. Nutrition
Bulletin, 26(4), 275–276. https://doi.org/bhpfnk
Machado, P. P. P., Martins, C., Vaz, A. R.,
Conceição, E., Bastos, A. P., & Gonçalves, S. (2014). Eating disorder examination questionnaire:
Psychometric properties and norms for the Portuguese population. European
Eating Disorders Review, 22(6), 448–453.
https://doi.org/10.1002/erv.2318
Matos, M., &
Pinto-Gouveia, J. (2010). Shame as a traumatic memory. Clinical Psychology
and Psychotherapy, 17(4), 299–312. https://doi.org/10.1002/cpp.659
McComb, S. E., & Mills, J. S. (2019). Orthorexia
nervosa: A review of psychosocial risk factors. Appetite, 140, 50–75.
https://doi.org/10.1016/j.appet.2019.05.005
Moroze, R. M., Dunn, T. M., Holland, J. C., Yager, J., & Weintraub, P. (2015). Microthinking
about micronutrients: A case of transition from obsessions about healthy eating
to near-fatal "orthorexia nervosa" and proposed diagnostic criteria. Psychosomatics, 56(4), 397-403. https://doi.org/10.1016/j.psym.2014.03.003
Pinto-Gouveia, J, Ferreira, C., & Duarte, C.
(2014). Thinness in the
pursuit for social safeness: An integrative model of social rank mentality to
explain eating psychopathology. Clinical
Psychology & Psychotherapy, 21(2), 154–165. https://doi.org/10.1002/cpp.1820
Poínhos, R., Franchini, B., Afonso, C., Correia, F.,
Teixeira, V. H., Moreira, P., Durão, C., Pinho, O., Silva, D., Lima Reis, J.
P., Veríssimo, T., & Almeida, M. D. V. (2009). Alimentação e estilos de
vida da população portuguesa: Metodologia e resultados preliminares [Food habits and
lifestyles of the Portuguese
population: Methodology and preliminar results]. Alimentação
Humana, 15(3), 43–61. https://bit.ly/2UibFwL
Segura-Garcia, C., Ramacciotti, C., Rania, M., Aloi,
M., Caroleo, M., Bruni, A., Gazzarrini,
D., Sinopoli, F., & De Fazio, P. (2015). The
prevalence of orthorexia nervosa among eating disorder patients after
treatment. Eating and Weight Disorders – Studies on Anorexia, Bulimia and Obesity,
20, 161–166. https://doi.org/10.1007/s40519-014-0171-y
Strahler, J., Hermann, A., Walter, B., &
Stark, R. (2018). Orthorexia nervosa: A behavioral complex or psychological
condition? Journal of Behavioral Addictions, 7(4), 1143-1156.
https://doi.org/10.1556/2006.7.2018.129
Troop,
N. A., Allan, S., Serpell, L., & Treasure, J. L.
(2008). Shame in women with a history of eating disorders. European Eating
Disorders Review, 16(6), 480–488. https://doi.org/10.1002/erv.858
Varga, M., Dukay-Szabó,
S., Túry, F., & van Furth, E. F. (2013). Evidence
and gaps in the literature on orthorexia nervosa. Eating and Weight
Disorders, 18(2), 103–111. https://doi.org/10.1007/s40519-013-0026-y
Varga,
M., Thege, B. K., Dukay-Szabó,
S., Túry, F., & van Furth, E. F. (2014). When
eating healthy is not healthy: Orthorexia nervosa and its measurement with the
ORTO-15 in Hungary. BMC Psychiatry, 14, Artigo
1. https://doi.org/10.1186/1471-244X-14-59
World Health Organization. (2019). International
statistical classification of diseases and related health problems (11ª ed.). https://icd.who.int/
Publicação em
Acesso Aberto © 2020. O(s) Autor(es). Este é um artigo de acesso aberto distribuído
sob a Licença Creative Commons Attribution, que
permite uso, distribuição e reprodução sem restrições em qualquer meio, desde
que o trabalho original seja devidamente citado. |
Open Access Publication © 2020. The Author(s).
This is an open access article distributed under the Creative Commons
Attribution License,
which permits unrestricted use, distribution, and reproduction in any medium,
provided
the
original work is properly cited. |