Revista Portuguesa de Investigação Comportamental e Social 2019 Vol. 6 (2): 39-55

Portuguese Journal of Behavioral and Social Research 2019 Vol. 6 (2): 39-55

Departamento de Investigação & Desenvolvimento • Instituto Superior Miguel Torga

 

 

ARTIGO ORIGINAL

Comportamentos ortoréticos e experiências de vergonha: A sua relação e impacto no comportamento alimentar perturbado

 

Orthoretic behaviors and shame experiences: Its relationship and impact on disordered eating

 

 

Patrícia Semião (1)

Sara Oliveira (1)

Cláudia Ferreira (1)

(1) Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação, Universidade de Coimbra, CINEICC, Portugal

 

Recebido: 09/07/2020; Revisto: 03/11/2020; Aceite: 11/11/2020.

https://doi.org/10.31211/rpics.2020.6.2.180

 

 

 

ÍNDICE

RESUMO | ABSTRACT

INTRODUÇÃO

MÉTODO

RESULTADOS

DISCUSSÃO

REFERÊNCIAS

 

 

 

Resumo

 

Objetivos: O objetivo do presente estudo foi testar o comportamento ortorético (estilo atitudinal e comportamental que reflete uma preocupação intensa e persistente com o consumo de alimentos saudáveis) enquanto fator de risco para o desenvolvimento de comportamentos alimentares perturbados e comportamentos de ingestão alimentar compulsiva. No Estudo 1 foram testadas diferenças entre níveis moderados/severos e níveis baixos de comportamento ortorético em relação às experiências de vergonha (geral e focada na imagem corporal) e indicadores de comportamento alimentar perturbado (geral e compulsão alimentar). No Estudo 2 foi testado um modelo teórico que hipotetiza a associação entre o comportamento ortorético, vergonha geral e da imagem corporal como fatores de risco do comportamento alimentar perturbado e da compulsão alimentar, em mulheres da população geral. Método: A amostra foi constituída por 307 mulheres da população geral, com idades compreendidas entre 18 e 63 anos (M = 33,62 ± 11,73) que responderam a um protocolo online composto por medidas de autorresposta. Resultados: As participantes com níveis moderados/severos de comportamento ortorético revelaram níveis significativamente superiores de vergonha geral, vergonha da imagem corporal, comportamento alimentar perturbado e compulsão alimentar, comparativamente às participantes com níveis baixos de comportamento ortorético. Os resultados da path analysis indicaram que o comportamento ortorético, a vergonha geral e a vergonha da imagem corporal explicam 51,0% da variância do comportamento alimentar perturbado e 47,0% da variância da compulsão alimentar. Conclusões: O presente estudo sugere o comportamento ortorético como possível fator de risco para o desenvolvimento de Perturbações do Comportamento Alimentar. Os resultados deste estudo são importantes para a prática clínica, mostrando que os comportamentos ortoréticos, apesar de serem muitas vezes considerados como comportamentos socialmente aceitáveis, quando associados a experiências de vergonha geral e da imagem corporal, podem contribuir para maior severidade dos comportamentos alimentares perturbados, tanto do tipo restritivo como de ingestão alimentar compulsiva.

 

Palavras-Chave: Comportamento ortorético; Vergonha geral; Vergonha da imagem corporal; Comportamento alimentar perturbado; Compulsão alimentar; Mulheres.

 

 

Abstract

 

Objectives: The present study aimed to explore orthoretic behaviors (an attitudinal and behavioral style that reflects an intense and persistent concern with healthy foods consumption) as a possible risk factor for developing disordered eating and binge eating behaviors. In Study 1, differences between moderate/severe levels and lower levels of orthoretic behaviors were tested concerning experiences of shame (general and body-image focused) and disordered eating indicators (general and binge eating). In Study 2, a theoretical model was tested in which it was hypothesized the association between orthoretic behaviors, general shame, and body-image as risk factors for disordered eating and binge eating in women from the general population. Method: The sample consisted of 307 women from the general population, aged between 18 and 63 years old (M = 33,62; DP = 11,73), who responded to an online protocol with a set of self-report measures of orthoretic behaviors, general and body-image shame, disordered eating and binge eating. Results: Participants with moderate/severe levels of orthoretic behaviors revealed significantly higher levels of general shame, body-image shame, disordered eating, and binge eating when compared to participants with lower levels of orthoretic behaviors. The path analysis results indicated that orthoretic behaviors, general shame, and body-image shame explain 51.0% of the variance of disordered eating and 47.0% of binge eating variance. Conclusions: The present study suggests orthoretic behaviors as a possible risk factor for Eating Disorders' development. The present study's data is important for clinical purposes, showing that orthoretic behaviors seem to contribute to greater severity of disordered eating, both restrictive and binge eating types, despite being considered socially acceptable behaviors associated with general experiences and body-image shame.

 

Keywords: Orthoretic behaviors; General shame; Body-image shame; Disordered eating behaviors; Binge eating; Women.

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Introdução

 

É unanimemente aceite que uma alimentação saudável e o consumo consciente dos alimentos são comportamentos indispensáveis na promoção da saúde e na prevenção da doença, assumindo ainda um papel central no tratamento de inúmeras condições médicas (KissLeizer & Rigó, 2019). No entanto, é importante sublinhar que a procura de uma alimentação saudável pode revelar contornos patológicos, com repercussões negativas a nível do funcionamento físico, psicológico e social (Coelho et al., 2016; KissLeizer & Rigó, 2019).

Ortorexia é o termo que deriva das palavras gregas orthos e orexis, que significam correto e apetite, respetivamente. O construto de Ortorexia Nervosa é abordado pela primeira vez por Steven Bratman, em 1997, para definir uma obsessão ou preocupação intensa e persistente acerca do consumo de alimentos saudáveis. Esta preocupação por uma alimentação “pura” ou saudável pode assumir-se como um estilo atitudinal e comportamental especialmente complexo (Koven & Abry, 2015), que apresenta como caraterísticas centrais: o excessivo controlo em relação à composição e às fontes de onde provêm os alimentos; um estilo rigoroso de planeamento e preparação das refeições; assim como o cumprimento de regras rígidas e específicas relativas ao padrão alimentar (e.g., valor nutricional, horário das refeições e/ou cor específica dos alimentos que se devem ingerir; Bratman, 1997; Bratman & Knight, 2000; KissLeizer & Rigó, 2019; Varga et al., 2014). Os indivíduos que adotam estas atitudes e comportamentos face à alimentação tendem a apresentar um sentimento de orgulho e superioridade associado ao seu padrão alimentar e uma atitude crítica e de desaprovação face a indivíduos que consideram não ter uma alimentação saudável (Bratman, 1997; Varga et al., 2014). De igual modo, estes indivíduos apresentam uma atitude de autocrítica perante quaisquer infrações no seu plano alimentar (e.g., ingestão de um alimento considerado não saudável), as quais se associam igualmente a níveis severos de culpa e ansiedade; Bratman & Knight, 2000; KissLeizer & Rigó, 2019).

Os comportamentos ortoréticos (i.e., o interesse e preocupação por uma alimentação saudável) não são por si só considerados patológicos (Koven & Abry, 2015). Assim, o que torna estes comportamentos alimentares patológicos é o seu caráter inflexível (i.e., quando são adotados de uma forma rígida e obsessiva) e a sua associação a consequências físicas, psicológicas e sociais nefastas para o indivíduo (e.g., desnutrição, sintomatologia ansiosa, intenso isolamento social), justificando assim o termo de Ortorexia Nervosa (Catalina Zamora et al., 2005; Moroze et al., 2015).

Apesar do interesse e investigação em relação à Ortorexia Nervosa ter aumentado de forma exponencial nos últimos anos (Cuzzolaro & Donini, 2016), até ao momento o conhecimento desta condição é ainda muito limitado (Varga et al., 2013). De facto, a Ortorexia Nervosa é um conceito relativamente recente e a sua definição constitui ainda um desafio (Cena et al., 2019). Adicionalmente, e embora o caráter patológico desta condição seja unanimemente aceite, a Ortorexia Nervosa não é ainda oficialmente reconhecida como uma perturbação psiquiátrica ou mental, não estando atualmente descrita no DSM-5 (American Psychiatric Association, 2013) ou no CID-11 (World Health Organization, 2019). Dunn e Bratman (2016), numa proposta de operacionalização dos critérios de diagnóstico de Ortorexia Nervosa, propuseram como critérios centrais: (1) foco obsessivo ou patológico na alimentação saudável; (2) preocupação e comportamento compulsivo com consequências clinicamente nocivas.

Bratman (1997) aponta a Ortorexia Nervosa como uma possível nova perturbação alimentar e vários autores sublinham que esta perturbação partilha caraterísticas com outras perturbações alimentares (Barthels et al., 2015; Segura-Garcia et al., 2015). Das semelhanças entre a Ortorexia Nervosa e as Perturbações do Comportamento Alimentar (como a Anorexia Nervosa e a Bulimia) destacam-se o controlo excessivo em relação à alimentação, o qual assume um impacto severo a nível biopsicossocial (Aranceta Bartrina, 2007; Brytek-Matera, 2012). No entanto, ao contrário do que acontece nas Perturbações do Comportamento Alimentar, em que o foco de preocupação é o controlo do peso e/ou imagem corporal através do controlo excessivo da quantidade de alimento ingerido, os indivíduos com Ortorexia Nervosa estão concentrados no controlo da qualidade dos alimentos e na necessidade de ingerir alimentos puros e saudáveis (Brytek-Matera et al., 2015).

A relação entre Ortorexia Nervosa e Perturbação do Comportamento Alimentar é controversa. Segundo alguns autores (e.g., Barthels, et al., 2018; Strahler et al., 2018), os indivíduos que adotam uma alimentação perturbada caraterizada pela restrição severa e/ou pela ocorrência de compulsão alimentar e comportamentos purgativos apresentam maior risco de desenvolverem Ortorexia Nervosa. Paralelamente, outros autores sugerem que a Ortorexia Nervosa pode constituir um fator de risco no desenvolvimento de comportamentos alimentares perturbados que, por sua vez, ao longo do tempo podem originar uma Perturbação do Comportamento Alimentar (Mac Evilly, 2001; McComb & Mills, 2019). Assim, não é claro se é a adoção de comportamentos alimentares perturbados que prediz a Ortorexia Nervosa, ou se são os comportamentos ortoréticos que explicam o desenvolvimento de comportamentos alimentares perturbados.

A literatura tem evidenciado que uma das emoções mais fortemente associada com as Perturbações do Comportamento Alimentar é a vergonha (e.g., Duffy & Henkel, 2016). Investigação consistente tem documentado altos níveis de vergonha em pacientes com uma Perturbação do Comportamento Alimentar (e.g., Jambekar et al., 2003; Troop et al., 2008). No entanto, até ao momento, ainda não foi explorada a relação entre a vergonha e comportamento ortorético. Neste sentido e dado que a Ortorexia Nervosa partilha caraterísticas com as Perturbações do Comportamento Alimentar, seria interessante, do ponto de vista da investigação, averiguar se existem associações entre a vergonha e a Ortorexia Nervosa.

A vergonha é uma emoção dolorosa, universal e complexa, que pode ser concetualizada como uma resposta defensiva ativada quando o eu se perceciona sob ameaça social (i.e., de ser criticado, humilhado, ostracizado ou rejeitado pelo grupo social; Gilbert, 2002). A literatura tem demonstrado a associação entre elevados níveis de vergonha e o comprometimento do funcionamento geral (Dearing & Tangney, 2011), assim como com diversas condições psicopatológicas (nomeadamente Depressão e Perturbação do Comportamentos Alimentar; Matos & Pinto-Gouveia, 2010; Ferreira et al., 2014).

A experiência de vergonha tem as suas origens na interação eu-outro, e é ativada quando o eu acredita existir negativamente na mente dos outros, como um agente social inferior, defeituoso, falhado ou pouco atrativo (vergonha externa). Estas vivências emocionais podem ser internalizadas, dando origem a autoavaliações negativas e a sentimentos de inadequação e inferioridade (vergonha interna; Gilbert, 2002). Estas avaliações negativas do eu (i.e., experiências de vergonha) podem estar focalizadas em relação ao peso e aparência física (Dias et al., 2020; Duarte et al., 2015b; Gilbert, 2002). A vergonha em relação à imagem corporal envolve autoavaliações negativas do eu com base em determinadas caraterísticas ou atributos da aparência física (e.g., tamanho, forma, peso do corpo), percecionados como sendo avaliados pelos outros e pelo eu como não atrativos e que colocam o indivíduo numa posição social vulnerável (Duarte et al., 2015b). A vulnerabilidade ou perceção de ameaça associada à vergonha focada na imagem corporal (i.e., sentimento de inferioridade, defeito e a perceção de perda de atratividade focada em determinadas partes ou características do corpo ou da aparência física) parece explicar a ativação de uma série de respostas atitudinais e comportamentais defensivas (e.g., esconder, ocultar ou corrigir as falhas percebidas na aparência física) (Duarte et al., 2015b). O comportamento alimentar perturbado (e.g., através da rígida seleção ou restrição de alimentos) pode ser, igualmente, compreendido como uma estratégia defensiva para lidar com sentimentos de vergonha (Pinto-Gouveia et al., 2014).

Assim, a presente investigação teve dois objetivos. No primeiro objetivo pretendeu explorar-se em que medida as mulheres que apresentam níveis moderados a severos de comportamento ortorético se distinguiam em termos de vergonha geral, vergonha da imagem corporal, comportamento alimentar perturbado e compulsão alimentar, relativamente às mulheres com níveis baixos de comportamento ortorético (Estudo 1). O segundo objetivo foi perceber em que medida a associação entre o comportamento ortorético, vergonha geral e vergonha da imagem corporal explicam uma maior severidade do comportamento alimentar perturbado e compulsão alimentar em mulheres, quando controlado o Índice de Massa Corporal (Estudo 2).

 

 

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Método

 

Participantes

A amostra foi constituída por 307 participantes do sexo feminino da população geral com idades entre 18 e 63 anos (M = 33,62; DP = 11,73) e uma média de 14,44 (DP = 3,10) anos de escolaridade. A maioria das participantes era solteira (53,1%), 42% eram casadas ou estavam em união de facto, e 4,9% eram divorciadas ou separadas. Em relação à área de residência, 52,4% das participantes residia em área urbana, 23,1% em área semiurbana e 24,4% em área rural. No que diz respeito ao regime alimentar, a maioria das participantes reportou ter um regime omnívoro (90,6%), 7,2% um regime vegetariano, 1,3% um regime vegano e 1,0% um regime paleo. O Índice de Massa Corporal (IMC) das participantes variou entre 17,21 e 40,89 (M = 24,25; DP = 4,62). A distribuição do IMC das participantes na amostra em estudo refletiu a distribuição normal em mulheres adultas da população portuguesa (Poínhos et al., 2009).

 

Instrumentos

O protocolo de avaliação foi composto por um questionário sociodemográfico (e.g., idade, sexo, anos de escolaridade, área de residência, estado civil, regime alimentar e altura e peso atual) e as seguintes medidas de autorresposta.

 

Índice de Massa Corporal (IMC)

O IMC foi calculado com base no índice de Quetelet (Kg/m2) através dos autorrelatos do peso e altura atual dos participantes.

 

Düsseldorfer Orthorexie Skala (DOS)

A DOS é uma medida de autorresposta que visa avaliar o comportamento ortorético (Barthels et al., 2015a; versão portuguesa de Ferreira & Coimbra, 2020). Esta escala é composta por dez itens avaliados numa escala Likert de quatro pontos (1 = “não se aplica a mim” a 4 = “aplica-se a mim”), tendo como valor mínimo dez pontos e máximo 40 pontos. Pontuações superiores nesta medida traduzem maior gravidade de comportamento ortorético. A DOS apresenta boas qualidades psicométricas com um alfa de Cronbach de 0,84 para a versão original (Barthels et al., 2015a), assim como na versão portuguesa 0,86 (Ferreira & Coimbra, 2020). No presente estudo o alfa de Cronbach foi de 0,87.

 

Body Image Shame Scale (BISS)

A BISS (Duarte et al., 2015) é uma medida de autorrelato composta por catorze itens que avaliam a vivência de vergonha em relação à imagem corporal. É constituída por duas subescalas: vergonha corporal externa [e.g., “Evito situações sociais (por exemplo, saídas, festas) por causa da minha aparência física”) e vergonha corporal interna (e.g., “Incomoda-me ver o meu corpo despido”)]. Os participantes são convidados a responderem a cada item, numa escala de cinco pontos (de 0 = “Nunca” a 4 = “Quase sempre”), de acordo com a frequência com que experienciam vergonha em relação à sua imagem corporal. A BISS apresenta boas propriedades psicométricas (α = 0,92; Duarte et al., 2015). Para o presente estudo o alfa de Cronbach foi de 0,95.

 

External and Internal Shame Scale (EISS)

A EISS (Ferreira et al., 2020) é composta por oito itens que avaliam o sentimento global da experiência de vergonha, tendo por base quatro domínios centrais (inferioridade/inadequação, senso de exclusão, inutilidade/vazio e crítica/julgamento). A escala é composta por duas dimensões (com 4 itens cada): vergonha externa (e.g., “Sinto que as outras pessoas me veem como se eu não estivesse à altura delas”) e vergonha interna (e.g., “Sinto que sou crítica em relação a mim (julgo-me negativamente)”. É solicitado que os participantes respondam a cada item de acordo com a sua experiência de vergonha, numa escala Likert de cinco pontos (0 = “Nunca” a 4 = “Sempre”). Pontuações mais altas refletem uma maior experiência de vergonha. A escala apresenta boas propriedades psicométricas, com um alfa de Cronbach de 0,89 (Ferreira et al., 2020). No presente estudo o alfa de Cronbach foi de 0,94.

 

Eating Disorder Examination Questionnaire (EDE-Q)

O EDE-Q (Fairburn & Beglin, 1994; versão portuguesa de Machado et al., 2014) é um questionário de autorrelato baseado na Eating Disorder Examination (Fairburn & Cooper, 1993) que avalia atitudes e comportamentos alimentares perturbados. Composto por quatro subescalas (restrição, preocupação com a comida, preocupação com o peso e preocupação com a forma), é constituído por 36 itens que avaliam a frequência e severidade das atitudes e comportamentos alimentares perturbados, nos últimos 28 dias. Os itens de 1 a 15 avaliam a frequência da ocorrência e são respondidos numa escala Likert de sete pontos (0 = “Nada” a 6 = “Todos os dias”), e os itens 29 a 36 avaliam a severidade dos sintomas numa escala Likert de sete pontos (0 = “Nada” a 6 = “Extremamente”). Este instrumento apresentou boas propriedades psicométricas, tanto na versão original (Fairburn & Beglin, 1994) como na versão portuguesa (α de Cronbach = 0,94; Machado et al., 2014), com as subescalas a apresentarem valores entre 0,72 e 0,92 (Machado et al., 2014). No presente estudo os alfas de Cronbach foram de 0,95 para a escala global e de 0,85, 0,85, 0,82 e 0,92 para as subescalas restrição, preocupação com a comida, preocupação com o peso e preocupação com a forma, respetivamente.

 

Binge Eating Scale (BES)

A BES (Gormally et al., 1982; versão portuguesa de Duarte et al., 2015a) é composta por 16 itens que avaliam sintomas associados à ingestão alimentar compulsiva, como a ingestão de grandes quantidades de alimentos, sentimentos ou cognições de culpa e a sensação de descontrolo que precedem ou seguem uma compulsão alimentar. Cada um dos itens compreende três a quatro afirmações que são opções e que traduzem diferentes níveis de gravidade. Os participantes são solicitados a selecionar a afirmação que mais corresponde à sua experiência. As pontuações da escala variam entre zero a 46 pontos, com as mais altas a indicar maior severidade da ingestão compulsiva. A BES apresenta boas qualidades psicométricas com um alfa de Cronbach de 0,85 no estudo original (Gormally et al., 1982) e de 0,88 na versão portuguesa (Duarte et al., 2015a). Para o presente estudo, o alfa de Cronbach foi de 0,90.

 

Procedimento

O presente estudo fez parte de uma investigação mais alargada acerca do estudo da ortorexia, regulação emocional e comportamento alimentar. Previamente à recolha da amostra, realizada no período entre outubro de 2019 e janeiro de 2020, o presente estudo foi aprovado pela comissão de ética da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Coimbra. O convite à participação na presente investigação foi divulgado através de diferentes redes sociais (Instagram e Facebook). Este convite incluía informação detalhada acerca dos objetivos e procedimentos do estudo, população alvo, e o caráter anónimo e confidencial da participação. Este convite incluía ainda um link que direcionava os potenciais participantes para a versão online do protocolo de investigação, constituído por uma recolha de dados sociodemográficos e informação acerca do peso, altura e padrão alimentar. Previamente ao preenchimento do protocolo, foi requerido o consentimento informado a todos os participantes. Os critérios de inclusão no presente estudo foram: (i) ser do sexo feminino (ii) possuir idade igual ou superior a 18 anos e inferior a 65 anos; e (iii) domínio da língua portuguesa. A amostra inicial foi composta por 561 indivíduos. Porém, levando em consideração os critérios de inclusão referidos, foram excluídos 254 participantes que não cumpriam os requisitos para participar na investigação.

Estratégia Analítica

A análise de dados foi realizada através do IBM SPSS Statistics 22.0 (SPSS IBM) e AMOS 22 (Arbuckle, 2013). De modo a explorar as caraterísticas da amostra foram elaboradas estatísticas descritivas (médias, desvios-padrão).

No Estudo 1, de modo a averiguar as diferenças entre participantes com níveis moderados a severos e participantes com níveis baixos de comportamento ortorético, foram formados dois grupos com base no ponto de corte da DOS (Chard, et al., 2019). Neste sentido, as participantes que apresentaram valores iguais ou superiores a 25 pontos nesta escala integraram o grupo de níveis moderados a severos de comportamento ortorético (Grupo DOS ≥ 25). Para a constituição de um grupo de comparação foi aleatorizado, a partir da amostra total, um grupo de 49 participantes que apresentaram valores inferiores a 25 pontos na mesma medida (Grupo DOS < 25). De seguida, foram realizados testes qui-quadrado e t de Student para amostras independentes de modo explorar as diferenças entre os dois grupos nas variáveis demográficas e nas medidas de autorresposta em estudo. Os tamanhos dos efeitos foram examinados com base nas diretrizes de Cohen (efeito pequeno: d ≥ 0,20; efeito médio: d ≥ 0,50 e efeito grande: d ≥ 0,80; Cohen, 1998) e de Cramer (efeito pequeno: V ≥ 0,10; efeito médio: V ≥ 0,30 e; efeito grande: V ≥ 0,50; Cohen, 1998).

Com o objetivo de testar em que medida a associação entre o comportamento ortorético, vergonha geral e vergonha da imagem corporal explicam uma maior severidade do comportamento alimentar perturbado e de compulsão alimentar (Estudo 2) foram realizadas análises de correlação de Pearson. As magnitudes dessas associações foram examinadas com base nas recomendações de Cohen e colaboradores (2003), nas quais correlações compreendidas entre 0,1 e 0,3 são consideradas fracas, acima de 0,3 moderadas, e iguais ou superiores a 0,5 fortes, considerando um nível de significância de 0,05.

Por último, através do software AMOS 22 foram realizadas análises de vias (path analysis) para examinar a adequabilidade do modelo proposto. Foi utilizado o método de Máxima Verossimilhança para verificar a significância dos coeficientes da path. Os efeitos diretos determinados entre as variáveis foram testados a partir de Bootstrap resampling (com 5000 amostras), com um intervalo de confiança (IC) corrigido de 95% (bias-corrected confidence intervals).

 

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Resultados

 

Análises Preliminares

Foram realizadas análises de assimetria (Sk) e de curtose (Ku). Os resultados mostraram que os valores de assimetria variaram entre 0,91 (BISS) e 1,57 (BES) e os valores de curtose variaram entre -0,11 (BISS) e 2,55 (BES). Neste sentido, os valores encontrados admitem a assunção do pressuposto da normalidade da distribuição dos dados (|Sk| < 3; |Ku| < 10), tendo por base as recomendações de Kline (2005).

 

Estudo 1

O principal objetivo do Estudo 1 foi testar em que medida as participantes que apresentaram níveis moderados a severos de comportamento ortorético se distinguiam das participantes que apresentaram níveis baixos de comportamento ortorético no que concerne à vergonha geral experienciada, à vergonha em relação à imagem corporal, aos comportamentos alimentares perturbados e aos comportamentos de compulsão alimentar.

Num primeiro passo, foram analisadas as diferenças entre os dois grupos no que concerne às variáveis sociodemográficas. Os resultados evidenciaram que o grupo das participantes com níveis moderados a severos de comportamento ortorético (DOS ≥ 25, n = 37) e o grupo de participantes com níveis baixos de comportamento ortorético (DOS < 25, n = 49) não apresentaram diferenças estatisticamente significativas nas variáveis sociodemográficas consideradas: idade (t(84) = -0,12, p = 0,905, d de Cohen = 0,03); anos de escolaridade (t(84) = -1,18, p = 0,243, d de Cohen = 0,26); IMC (t(84) = -0,88, p = 0,384, d de Cohen = 0,19); área de residência (χ2(2) = 4.49, p = 0,106, V de Cramer = 0,23); estado civil (χ²(2) = 0,26, p = 0,877, V de Cramer = 0,06); e regime alimentar (χ²(2) = 2,06, p = 0,358, V de Cramer = 0,16).

Relativamente às variáveis em estudo, o grupo que apresentou níveis moderados a severos de comportamento ortorético (DOS ≥ 25) reportou níveis significativamente mais elevados de vergonha geral (EISS), vergonha da imagem corporal (BISS), comportamento alimentar perturbado (avaliado através do score global da EDE-Q e das suas subescalas) e de compulsão alimentar (BES), comparativamente com o grupo que apresentou níveis baixos de comportamento ortorético (DOS < 25). A análise das diferenças entre os dois grupos mostrou tamanhos de efeitos médios a grandes (Tabela 1).

 

 

Tabela 1

Diferenças Entre Participantes com Níveis Moderados a Severos de Comportamento Ortorético (Grupo DOS ≥ 25) e Participantes com Níveis Baixos de Comportamento Ortorético (Grupo DOS < 25)

 

 

 

 

 

 

t

gl

p

d

 

 

 

M

DP

 

M

DP

 

 

EISS    

11,27

8,46

 

6,53

6,50

-2,94

84

0,004

0,63

 

 

BISS

18,89

14,23

 

12,39

10,05

-2,37

61,64

0,021

0,53

 

 

EDE-Q-total

2,10

1,32

 

0,91

1,03

-4,53

66,06

< 0,001

1,00

 

 

EDE-Q-restrição

2,22

1,80

 

0,62

0,89

-4,95

49,21

< 0,001

1,12

 

 

EDE-Q-preoccomida

1,27

1,30

 

0,46

0,82

-3,32

57,23

0,002

0,74

 

 

EDE-Q-preocpeso

2,29

1,59

 

1,18

1,37

-3,39

70,89

0,001

0,75

 

 

EDE-Q-preocforma

2,61

1,75

 

1,37

1,43

-3,53

68,37

0,001

0,78

 

 

BES

12,19

8,78

 

5,80

6,18

-3,96

84

< 0,001

0,84

 

 

Nota. DOS = Düsseldorfer Orthorexie Skala; EISS = External and Internal Shame Scale; BISS= Body Image Shame Scale; EDE-Q = Eating Disorder Examination Questionnairescore global e subescalas (restrição; preocupação com a comida; preocupação com o peso e preocupação com a forma); BES = Binge Eating Scale; M = Média; DP = Desvio-Padrão; t = Teste t de Student; gl = Graus de liberdade; p = Nível de significância; d = d de Cohen.

 

 

Estudo 2

O Estudo 2 teve como objetivo testar em que medida a associação entre os comportamentos ortoréticos, vergonha geral e vergonha da imagem corporal, explicavam uma maior severidade do comportamento alimentar perturbado e de compulsão alimentar, considerando a amostra total constituída por 307 mulheres.

Análise Correlacional

Os resultados das análises de correlação (Tabela 2) permitiram verificar que o comportamento ortorético (DOS) se associa positivamente com a vivência de vergonha geral (EISS) e focada na imagem corporal (BISS), com magnitude fraca, assim como, com o comportamento alimentar perturbado (EDE_Q), com magnitude moderada e a compulsão alimentar (BES), com magnitude fraca. Verificou-se, igualmente, uma associação positiva forte entre vergonha geral e vergonha da imagem corporal. Por sua vez, a vergonha geral e focada na imagem corporal revelaram estar correlacionadas positivamente com o comportamento alimentar perturbado (com magnitudes moderada e forte, respetivamente) e com a compulsão alimentar (ambas com magnitude forte). O comportamento alimentar perturbado apresentou uma correlação positiva forte com a compulsão alimentar. Por fim, o IMC apresentou associações positivas e significativas com todas as variáveis em estudo, à exceção do comportamento ortorético, com o qual não foi encontrada uma associação significativa.

 

 

Tabela 2

Médias (M), Desvios-Padrão (DP) e Valores de Correlações entre as Variáveis em Estudo (N = 307)

 

 

 

M

DP

1

2

3

4

5

6

 

 

1. DOS

17,00

11,42

0,16**

0,22***

0,34***

0,24***

0,11

 

 

2. EISS

7,34

7,13

0,67***

0,49***

0,54***

0,16**

 

 

3. BISS

13,18

11,42

0,63***

0,63***

0,39***

 

 

4. EDE-Q

1,22

1,19

0,68***

0,46***

 

 

5. BES

7,37

7,61

 

 

 

 

0,40***

 

 

6. IMC

24,25

4,62

 

 

Nota. DOS = Düsseldorfer Orthorexie Skala; EISS = External and Internal Shame Scale; BISS= Body Image Shame Scale; EDE-Q = Eating Disorder Examination Questionnaire; BES = Binge Eating Scale; IMC = Índice de Massa Corporal.

**p < 0,01; ***p < 0,001.

 

 

Análise de vias (Path Analysis)

Através de uma análise de vias (path analysis) foi testada a associação entre comportamento ortorético (DOS), vergonha geral (EISS) e vergonha da imagem corporal (BISS), consideradas como variáveis independentes, e a adoção de comportamento alimentar perturbado (EDE-Q) e compulsão alimentar (BES), consideradas como variáveis dependentes, quando controlado o efeito do IMC.

O modelo foi testado através de um modelo saturado (isto é, com zero graus de liberdade) constituído por 27 parâmetros. O modelo apresentou um ajustamento perfeito aos dados, apresentando todas as vias (paths) significativas.

Os resultados demonstraram que o comportamento ortorético revelou um efeito direto no comportamento alimentar perturbado (β = 0,21; bDOS = 0,04; SEb = 0,01; Z = 5,04; p < 0,001) e na compulsão alimentar (β = 0,10; bDOS = 0,13; SEb = 0,05; Z = 2,40; p = 0,016). A vergonha geral revelou um efeito direto no comportamento alimentar perturbado (β = 0,18; bEISS = 0,03; SEb = 0,01; Z = 3,23; p < 0,001) e na compulsão alimentar (β = 0,26; bEISS = 0,28; SEb = 0,06; Z = 4,64; p < 0,001). Adicionalmente, a vergonha da imagem corporal apresentou um efeito direto no comportamento alimentar perturbado (β = 0,36; bBISS = 0,28; SEb = 0,01; Z = 6,11; p < 0,001) e na compulsão alimentar (β = 0,34; bBISS = 0,23; SEb = 0,04; Z = 5,57; p < 0,001). Por último, o IMC revelou um efeito direto no comportamento alimentar perturbado (β = 0,27; bIMC = 0,07; SEb = 0,01; Z = 6,22; p < 0,001) e na compulsão alimentar (β = 0,22; bIMC = 0,36; SEb = 0,08; Z = 4,83; p < 0,001).

O modelo revelou explicar 51% e 47% das variâncias do comportamento alimentar perturbado e da compulsão alimentar, respetivamente (Figura 1).

 

Figura 1

Modelo da Análise de Vias (Path Analysis) (clique para abrir)

 

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Discussão e Conclusão

 

A literatura tem sublinhado a importância de um maior investimento na investigação no âmbito da Ortorexia Nervosa (Cena et al., 2019). De facto, embora o interesse e a produção científica em relação à Ortorexia Nervosa tenham crescido de forma exponencial nos últimos anos (Cuzzolaro & Donini, 2016), o conhecimento acerca da definição, etiologia e do impacto do comportamento ortorético é, ainda, muito limitado (Cena et al., 2019; Varga et al., 2013).

A presente investigação teve como principal objetivo clarificar se o comportamento ortorético se associa a um aumento de risco do comportamento alimentar perturbado e de compulsão alimentar. Assim, num primeiro estudo (Estudo 1) pretendeu averiguar-se se existiam diferenças entre mulheres que reportam níveis moderados a severos de comportamento ortorético e mulheres com níveis baixos de comportamento ortorético em relação às experiências de vergonha (geral e focada na imagem corporal) e em indicadores de comportamento alimentar perturbado (geral e compulsão alimentar). Num segundo estudo (Estudo 2), foi testado um modelo teórico no qual foi hipotetizado que é a associação entre o comportamento ortorético, a vergonha geral e a vergonha da imagem corporal, que explica uma maior severidade no comportamento alimentar perturbado e na compulsão alimentar nas mulheres da população geral.

No que concerne ao estudo das diferenças entre mulheres com valores superiores (DOS ≥ 25) e inferiores (DOS < 25) de comportamento ortorético, os resultados mostraram a existência de diferenças significativas. Os dados revelaram que as mulheres da população geral que reportaram níveis moderados a severos de comportamento ortorético apresentaram níveis superiores de vergonha geral e de vergonha da imagem corporal, assim como maior severidade do comportamento alimentar perturbado e de compulsão alimentar, quando comparadas com mulheres com níveis baixos de comportamento ortorético. Os resultados parecem apoiar a hipótese de que o comportamento ortorético, quando assume níveis moderados a severos, representa um possível fator de risco para o desenvolvimento de uma perturbação do comportamento alimentar (Mac Evilly, 2001).

A fim de explorar a relação entre comportamento ortorético, vergonha geral, vergonha focada na imagem corporal, comportamento alimentar perturbado e ingestão alimentar compulsiva foram realizadas análises de correlação de Pearson numa amostra de mulheres da população geral. Em consonância com os resultados do Estudo 1, os resultados revelaram que o comportamento ortorético se associa de forma positiva a maiores níveis de vergonha (tanto geral como focada na imagem corporal) e maior severidade dos comportamentos alimentares perturbados e de ingestão alimentar compulsiva. Estes dados parecem estender a investigação no âmbito da ortorexia nervosa, uma vez que do nosso conhecimento este é o primeiro estudo que explora a relação entre estes comportamentos e a vivência de vergonha. Estes resultados estão igualmente em consonância com estudos prévios (Barthels, et al., 2018; Strahler et al., 2018), corroborando a associação entre a preocupação extrema com a alimentação saudável (comportamento ortorético) e níveis mais severos de comportamento alimentar perturbado (tanto do tipo restritivo como de ingestão alimentar compulsiva).

Com base nestes dados foi testado, através de uma path analysis, um modelo teórico no qual se hipotetiza que a relação entre o comportamento ortorético com a vivência de experiências de vergonha geral e focada na imagem corporal assume um impacto positivo na adoção de comportamentos alimentares perturbados e na compulsão alimentar. O modelo teórico testado apresentou uma adequação perfeita aos dados, explicando 51,0% da variância do comportamento alimentar perturbado e 47,0% da variância da compulsão alimentar. Estudos recentes defendem que as mulheres com ortorexia nervosa tendem a ter uma relação de orgulho com os seus corpos, querendo até mostra-los aos outros (Barthels et al., 2017). No entanto, os resultados do presente estudo sugerem que, em mulheres da população geral, a adoção de comportamentos ortoréticos (i.e., de um estilo atitudinal e comportamental que traduz uma preocupação intensa e persistente com uma alimentação saudável), quando associados à vivência de experiências de inferioridade ou inadequação em termos gerais e focadas na imagem corporal, explicam níveis mais severos de comportamento alimentar perturbado, tanto do tipo restritivo como de compulsão alimentar.

Estes resultados devem ser examinados considerando algumas limitações. Uma das limitações principais prende-se com a natureza transversal do estudo, não sendo possível retirar conclusões de causalidade entre as variáveis. Futuramente, outros estudos devem aferir estes resultados recorrendo a estudos longitudinais. Relativamente à generalização dos resultados, esta pode estar limitada, dado que a amostra do estudo é constituída apenas por mulheres. De forma a ultrapassar esta limitação, futuros estudos deverão incluir homens da população geral, de modo a assegurar uma amostra mais representativa. A utilização exclusiva de medidas de autorresposta também surge como limitação, uma vez que poderão enviesar os resultados devido ao seu carácter subjetivo. A utilização de entrevistas, em investigações futuras, surge como uma possível solução para testar a plausibilidade dos resultados. No entanto, o caráter online da investigação pode ter permitido que as participantes respondessem de forma mais honesta, transmitindo segurança e anonimidade.

Em conclusão, o presente estudo sugere que os comportamentos ortoréticos surgem como possíveis fatores de risco para o desenvolvimento de comportamentos alimentares perturbados, tanto do tipo restritivo como do tipo ingestão alimentar compulsiva, ao demonstrar que as mulheres com níveis moderados a severos de comportamento ortorético tendem a experienciar níveis superiores de vergonha geral e vergonha da imagem corporal, comparativamente às mulheres com níveis baixos de comportamento ortorético. Adicionalmente, os resultados fornecem novos dados à investigação, demonstrando pela primeira vez uma associação entre os comportamentos ortoréticos e a experiência de vergonha (tanto geral como focada na imagem corporal). Paralelamente, a associação positiva entre os comportamentos ortoréticos e as experiências de vergonha parece explicar de forma substancial a adoção de comportamentos alimentantes perturbados e ingestão alimentar compulsiva nas mulheres da população geral. Estes resultados são importantes para a prática clínica ao mostrar que os comportamentos ortoréticos, apesar de serem muitas vezes considerados como comportamentos socialmente aceitáveis (Brytek-Matera & Donini, 2018), devem ser foco de avaliação em contexto clínico de modo a permitir uma sinalização precoce de níveis moderados a extremos destes comportamentos. De facto, os resultados sugerem que os comportamentos ortoréticos devem merecer atenção clínica, na medida em que se podem assumir como um comportamento de risco para o desenvolvimento de Perturbações do Comportamento Alimentar, especialmente quando se associam a uma vivência vergonha geral e da imagem corporal. Paralelamente, estes resultados reforçam a pertinência de intervenções focadas na compaixão para a diminuição do impacto das experiências de vergonha no comportamento alimentar perturbado, quer de cariz restritivo quer de natureza compulsiva (Ferreira et al., 2014; Pinto-Gouveia et al., 2014).

Espera-se que este estudo seja um ponto de partida para outras possíveis investigações, a fim de perceber melhor a associação entre o comportamento ortorético e as experiências de vergonha (geral e focada na imagem corporal) e manter alerta os profissionais de saúde para a possibilidade de a ortorexia nervosa ser uma forma mal adaptativa de lidar com sentimentos de vergonha.

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