Uma
abordagem longitudinal da contribuição do trauma e da vergonha nos sintomas
depressivos em adolescentes*
Artigo Original
Marina Cunha ⓘ ✉, Rute Almeida
ⓘ, Sónia Cherpe
ⓘ, Sónia Simões
ⓘ, Mariana
Marques ⓘ
https://doi.org/10.31211/rpics.2018.4.2.62
Recebido 11 setembro 2018
Aceite 30 setembro 2018
* Este artigo resulta de uma dissertação de
mestrado em Psicologia Clínica e uma versão breve desta investigação foi alvo
de um póster apresentado nas 2ªs Jornadas de Investigação em Psicologia Clínica
do Instituto Superior Miguel Torga, tendo ganho o 1º prémio atribuído por um
júri qualificado para o efeito.
Contexto: A revisão da literatura sobre
potenciais fatores preditores dos sintomas depressivos em adolescentes tem
mostrado que as experiências traumáticas durante a
infância, as experiências de vergonha e o género têm um contributo
relevante.
Objetivo: Pretende-se com o presente estudo
observar a
variabilidade intraindividual da vergonha, acontecimentos traumáticos e género
e testar o poder preditivo destas variáveis a 6 meses na evolução de sintomas
depressivos (variável dependente) em adolescentes.
Método: A amostra foi constituída por 325 adolescentes,
com idades compreendidas entre os 12 e os 18 anos, distribuídos pela zona
centro de Portugal e a frequentar o 3.º ciclo do ensino básico e ensino
secundário. Foram utilizados o Inventário de Depressão para Crianças, a Escala
Breve de vergonha e o Questionário de Trauma na Infância para a avaliação das
variáveis referidas. Os resultados longitudinais foram analisados através de
uma análise de regressão linear múltipla.
Resultados: Verificou-se
uma associação positiva entre experiências relatadas como traumáticas e as
perceções de vergonha (T1) e os sintomas depressivos (T2, após 6 meses). O
modelo de regressão linear múltipla explicou 63% da variância dos sintomas
depressivos no T2, podendo contemplar-se que a pertença ao género feminino, a
experiência de sentimentos de vergonha e de acontecimentos percebidos como
abuso afetivo, abuso sexual e de negligência emocional (variáveis do trauma)
permitiram predizer sintomas depressivos na adolescência.
Conclusão: Dado que
existe alguma evidência do impacto de acontecimentos traumáticos do tipo
abuso/negligência durante a infância e de perceções de vergonha, durante a
adolescência no desenvolvimento de sintomas depressivos, será pertinente que
estas variáveis sejam tidas em conta, quer na avaliação, quer nas intervenções
psicoterapêuticas nesta etapa do desenvolvimento humano. Este estudo contribui
para salientar o papel de fatores de vulnerabilidade para os sintomas
depressivos na adolescência.
Palavras chave:
Depressão · Adolescentes ·
Acontecimentos traumáticos · Sentimentos
de vergonha
As experiências adversas na infância, tal
como exposição a acontecimentos traumáticos e vivências de vergonha podem
moldar a forma como os adolescentes se percecionam a si próprios e aos outros,
bem como lidam com as adversidades, podendo aumentar a sua vulnerabilidade para
a perturbação depressiva. Na verdade, alguns estudos mostraram que as
experiências traumáticas na infância e na adolescência, sentimentos de vergonha
e o género têm sido consideradas variáveis preditoras de sintomatologia
depressiva (Cunha, Matos, Faria, & Zagalo, 2012; Matos, Pinto-Gouveia, & Duarte, 2013; Monteiro, Matos, & Oliveira, 2015). Este tipo de
vivências de caráter traumático encontra-se associado a um maior risco de
episódios de vergonha, que por sua vez aumentam o risco de sintomatologia
depressiva (Bennett, Sullivan, & Lewis, 2010; Muris et al., 2016).
O período de transição da adolescência,
consensualmente considerado como um período de mudanças acentuadas a nível
físico e psicológico, é caraterizado pela emergência de competências cognitivas
e socio-emocionais que vão refletir-se na aquisição de novos papéis e
responsabilidades pessoais e sociais por parte do jovem, bem como propiciar uma
maior exposição a diversos fatores indutores de stresse. Estas características
tornam este período especialmente desafiante, o qual inclui potencialidades,
mas também vulnerabilidades próprias (Dahl, 2004; Steinberg, 2010). Enquanto a maioria dos jovens pode
reagir positivamente a estas mudanças típicas da adolescência, existe
igualmente um número considerável de indivíduos que desenvolve dificuldades ou
problemas de adaptação que interferem negativamente nas várias áreas da vida
(social, escolar, familiar, individual) (Barry, Murphy, &
O’Donovan, 2017). Ao nível da saúde mental, alguns estudos têm revelado um
aumento da prevalência das dificuldades emocionais (de carácter exteriorizado e
internalizado) na adolescência (e.g., Costello, Copeland,
& Angold, 2011; Thapar, Collishaw, Pine, &
Thapar, 2012; World Health Organization,
2018). Especificamente a
sintomatologia depressiva e/ou depressão é uma das condições mais frequentes na
adolescência (Gore et al., 2011), sabendo-se, por exemplo,
que os principais sintomas depressivos aumentam cerca de 2% no início da
adolescência (13-15anos) e 15% na adolescência média (15-18anos) (Ahmed, Bittencourt-Hewitt, & Sebastian, 2015). Neste
sentido, estudos que procurem clarificar os fatores de desenvolvimento e ou de
manutenção dos sintomas depressivos, bem como a relação entre estes fatores,
enquanto moderadores ou mediadores, podem desempenhar um papel fundamental na
identificação precoce dos jovens em risco, contribuindo, assim, para a prevenção
do desenvolvimento ou agravamento desta perturbação.
O estudo de Shore, Toumbourou, Lewis e
Kremer (2018) sobre trajetórias longitudinais de
adolescentes com sintomas depressivos mostrou que sintomas fracos a moderados
estavam associados a um ajustamento psicossocial pobre dos jovens (traduzido
por diversos indicadores). Este estudo identificou o género, o estatuto
socioeconómico, acontecimentos de vida indutores de stresse, problemas de
comportamento, uso de substâncias e problemas nas relações com os pais e pares
como fatores preditores das trajetórias de maior sintomatologia depressiva (Shore et al, 2018). Na revisão da literatura, os
acontecimentos traumáticos na infância têm sido consensualmente considerados um
fator de risco para o desenvolvimento de psicopatologia depressiva em idade
adulta. Os indivíduos com história de abuso sexual na infância relatam uma
história de vida de depressão em cerca de 30-40% (Mandelli,
Petrelli, & Serretti, 2015; Musliner & Singer,
2014). Outros tipos de traumas ocorridos ao longo da infância e
adolescência (e.g., abuso emocional, negligência física, emocional) têm
mostrado poder operar como fatores de risco para uma variedade de perturbações
mentais que persistem na idade adulta (Firth, 2014; Liu, Alloy, Abramson, Iacoviello, & Whitehouse, 2009; Mandelli et al., 2015). Crianças com história de
abandono/negligência estão em risco de aumento de sintomas depressivos na idade
adulta (Hopwood, Ansell, Fehon, & Grilo, 2011; Kim & Cicchetti, 2006; Pinquart &
Shen, 2011).
Tolchinsky (2014)
define que o trauma é um fenómeno biopsicossocial complexo, que envolve a
exposição a múltiplos eventos traumáticos, de natureza interpessoal, durante a
infância que resulta em consequências adversas. Estas experiências emocionais
negativas estão muitas vezes associadas a vivências acentuadas de vergonha e
raiva, podendo a vergonha tornar-se parte da identidade da vítima, moldando a
forma como se perceciona a si mesmo e aos outros, com efeitos nocivos na saúde
mental ao longo da vida (Negrao, Bonanno, Noll, Putnam, &
Trickett, 2005; Stuewing & McCloskey, 2005).
Por sua vez, a vergonha é conceptualizada
por diversos autores como uma emoção multifacetada, autoconsciente, relacionada
com uma avaliação global negativa do indivíduo acerca de si mesmo que
influencia de forma poderosa o funcionamento psicológico ao longo da vida, a
nível individual, interpessoal e cultural (Gilbert, 1998;
Matos & Pinto-Gouveia, 2010; Tangney
& Dearing, 2002).
Segundo o modelo biopsicossocial defendido
por Gilbert (2002, 2006),
a emoção de vergonha tem um papel fundamental na vida do individuo já que vai
moldar o seu comportamento em contextos sociais, influenciar os sentimentos
envolventes na relação consigo próprio e contribuir na construção da sua
identidade, aceitabilidade e desejabilidade social (Matos
& Pinto-Gouveia, 2010; Tangney & Dearing, 2002).
Com efeito, Gilbert defende que na base da vergonha estão avaliações e
sentimentos focados na forma como o eu é visto e julgado pelos outros, no eu
como objeto, e no eu julgado pelo eu. Assim sendo, apesar de relacionadas,
podem ser distinguidas duas dimensões da vergonha: externa e interna. A
vergonha externa diz respeito à perceção que o individuo tem sobre a forma como
os outros o vêm. Concretamente, o indivíduo receia ser visto pelos outros como
inferior, defeituoso ou incompetente e, consequentemente, que esta visão
negativa possa levar à rejeição, ataque ou perda da atratividade aos olhos dos
outros (Gilbert, 2006). Por sua vez, a vergonha
interna refere-se a uma visão negativa por parte do sujeito em relação a si
mesmo, que o leva sentir-se inferior e inadequado, na comparação com os outros,
mesmo quando estes manifestam uma avaliação e afeto positivo pelo indivíduo.
Neste caso, o foco de atenção está no eu e não no mundo social externo e
dirigido para a mente do outro. Contudo, tal como afirmámos anteriormente,
estas duas dimensões estão amplamente associadas, já que ambas se reportam a
atributos negativos do eu e se potenciam mutuamente (Goss,
Gilbert, & Allan, 1994). A emoção de vergonha (quer interna, quer
externa) tem sido descrita como associada à psicopatologia (Feiring,
2005; Szentágotai-Tătar et al., 2015),
nomeadamente ao desenvolvimento e manutenção de sintomas depressivos, quer em
adultos (e.g., Matos & Pinto-Gouveia, 2010; Matos et al., 2013), quer em adolescentes (Åslund, Nilsson, Starrin, & Sjöberg, 2007; Cunha et al., 2012; Irons & Gilbert,
2005; Kim, Talbot, & Cicchetti, 2009). É
possível compreender que os aspetos da vergonha parecem especialmente
relevantes na infância e adolescência, tendo em conta que neste período as
competições sociais se podem tornar mais intensas e relevantes, orientadas para
a construção de autoidentidade (Gilbert & Irons,
2009; McLean, Breen, & Fournier, 2010; Steinberg, 2005).
Tendo em conta o conhecimento atual sobre a
relevância dos fatores de risco na sintomatologia depressiva, o presente estudo
procura compreender o poder preditivo dos acontecimentos de vida traumáticos e
experiências de vergonha na evolução ao longo de seis meses da sintomatologia
depressiva em adolescentes, controlando o efeito do género.
Participantes
Participaram inicialmente neste estudo (T1) 401 adolescentes, 239 do sexo
feminino e 162 do sexo masculino, a frequentar o 3.º ciclo do ensino básico e
ensino secundário, em escolas da zona centro de Portugal, com idades
compreendidas entre os 13 e os 17 anos.
No segundo momento de avaliação (T2), seis meses depois, verificou-se uma
perda de 76 indivíduos (19%), sendo esta perda explicada pela mudança da escola
por parte dos jovens, pela dificuldade de os contactar ou pela desistência de
participação no estudo. A amostra final, relativa ao estudo longitudinal,
ficou, assim, constituída por 325 indivíduos (199 do sexo feminino e 126 do
sexo masculino). As idades variaram entre os 13 e os 18 anos (M = 14,50; DP = 1,28), não se verificando diferenças significativas em função
do sexo (t(269,93) = 0,27;
p = 0,789).
Instrumentos
Para além da recolha de informação relativa às características
sociodemográficas, nomeadamente sexo, idade e ano de escolaridade a frequentar,
foi utilizado um conjunto de questionários de autorresposta para avaliar as
variáveis de interesse.
Inventário de Sintomas
Depressivos para crianças (Children’s Depression Inventory – CDII;
Kovacs, 1983;
tradução e adaptação portuguesa: Marujo, 1994). Este
instrumento é constituído por 27 itens distribuídos por vários grupos de
sentimentos e ideias, cada um com três alternativas de resposta, com o intuito
de avaliar como a criança/adolescente descreve os seus sentimentos nas duas
últimas duas semanas. As afirmações são classificadas em ordem crescente de
gravidade e a pontuação varia entre 0 – “ausência de sintomas” e 2 “sintoma
definitivo”. A pontuação total pode variar entre 0 e 54
pontos e os resultados permitem estabelecer uma definição empírica de
sintomatologia depressiva (Cardoso, Rodrigues, & Vilar,
2004). Este inventário engloba cinco dimensões, sendo estas o humor
negativo, problemas interpessoais, ineficácia, anedonia e autoestima negativa.
A versão portuguesa deste inventário, à semelhança da versão original
americana, revelou igualmente uma boa consistência interna (apresentando
coeficientes de alfa de Cronbach que variaram entre 0,80 e 0,84) para o total
da escala (Pereira, Matos, & Azevedo, 2014). No
presente estudo, o total do questionário revelou uma excelente consistência
interna, quer no T1 (α de Cronbach = 0,90), como no T2 (α de Cronbach = 0,89).
Questionário de Trauma para a Infância (Childhood Trauma
Questionnaire – CTQ; Bernstein & Fink, 2004;
tradução e adaptação: Cherpe, Matos, & Pereira, 2010).
É um instrumento de autorresposta que avalia as experiências de abuso e
negligência da criança ao longo do seu desenvolvimento. Inclui 28 itens, 25 dos
quais procuram avaliar, em termos retrospetivos, as cinco formas de abuso
sugeridas por Bernstein e colaboradores (2003), o
abuso afetivo, abuso físico, abuso sexual, a negligência emocional e a
negligência física. Os restantes três itens avaliam a tendência de negação ou
de minimização do abuso (Bernstein et al., 2003).
Para cada item é apresentada uma escala de resposta de 5 pontos, as pontuações
variam de 1
“nunca verdadeiro” a 5 “muito frequente”. O estudo original
demonstrou uma boa consistência interna nos cinco fatores com valores de alfa
de Cronbach entre 0,61 e 0,95 (Bernstein et al., 2003;
Spinhoven et al., 2014), assim como a versão
portuguesa (Grassi-Oliveira, Stein, & Pezzi, 2006).
No presente estudo demonstrou igualmente uma consistência interna adequada no
T1 e T2, nos seguintes fatores: abuso afetivo (α de Cronbach = 0,70 e α de
Cronbach = 0,77, respetivamente); abuso físico (α de Cronbach = 0,70 e α de
Cronbach = 0,71; abuso sexual (α de Cronbach = 0,87 e α de
Cronbach = 0,91); e negligência emocional (α de Cronbach = 0,81 e α de
Cronbach = 0,83); por último, relativamente ao fator negligência física
evidenciou uma pobre consistência interna, (α de Cronbach = 0,52 e α de
Cronbach = 0,49 para o T1 e T2, respetivamente. Por esta razão este fator não
foi considerado nas análises seguintes.
Escala de Vergonha Externa (Others As Shamers – OAS; Goss et al.,
1994; Tradução e adaptação: Lopes, Pinto-Gouveia, &
Castilho, 2005). É um instrumento de autorresposta que avalia a perceção
que cada pessoa tem acerca da forma como os outros a vêm. Foi utilizada a
versão longa constituída por 18 itens que traduzem sentimentos ou vivências de
vergonha, aos quais o indivíduo deve assinalar a sua frequência, utilizando,
para o efeito, uma escala de 5 pontos. Quanto maior é a pontuação, maior o
nível de vergonha externa. Relativamente às características psicométricas, a
versão inglesa original e a versão portuguesa para adolescentes mostraram uma
boa consistência interna (Cunha et al., 2012; Goss et al., 1994). No presente estudo, este instrumento
evidenciou igualmente boas qualidades psicométricas, revelando valores
excelentes de consistência internam (α de Cronbach =
0,95 no T1 e α de Cronbach = 0,96 no T2).
Procedimentos
O presente estudo foi submetido à aprovação da Direção Geral da Educação
e da Comissão Nacional de Proteção de Dados. Foram solicitados os
consentimentos informados dos participantes e respetivos encarregados de
educação ou representantes legais, tendo seguido os requisitos éticos e
deontológicos de investigação. O protocolo de avaliação foi aplicado em grupo,
em contexto de sala de aula, em dois momentos diferenciados, Dezembro de 2014 e
6 meses depois. De referir ainda que este estudo faz parte de uma investigação
mais ampla sobre fatores preditores da depressão na adolescência (ainda em
curso).
Análise estatística
A investigação referida
obedece a um desenho longitudinal, recorrendo a medições repetidas ao longo do
tempo de forma avaliar as mudanças intraindividuais e utilizando uma
metodologia de investigação quantitativa, não experimental, correlacional e
observacional.
No que diz respeito ao
tratamento dos dados, foram realizadas análises estatísticas descritivas e
inferenciais utilizando para o efeito o programa SPSS (Statistic Package for the Social Sciences, versão 24). Foram
utilizados diferentes testes estatísticos, selecionados em função dos objetivos
das análises, das características das variáveis consideradas, bem como após a
verificação dos pressupostos necessários.
Iniciou-se o processo da
análise de dados através de medidas descritivas dos dados. Esta permitiu
resumir a informação numérica de uma maneira estruturada, a fim de obter uma
visão geral das variáveis medidas numa amostra: frequências absolutas e
relativas; medidas de tendência central, como a média, e medidas de dispersão
como o desvio padrão. Procedeu-se à análise da consistência interna dos
instrumentos em estudo, através do cálculo do alfa de Cronbach, considerada uma
estimativa adequada da fidelidade de um teste e qualidade dos itens (Marôco, 2011).
Na análise da estabilidade
absoluta foi utilizada o coeficiente de correlação de Pearson e o teste t
para amostras emparelhadas na comparação das médias da mesma amostra em função
dos tempos de avaliação.
Posteriormente, foram
realizadas análises de regressão linear múltipla hierárquica para averiguar a
contribuição independente dos diferentes fatores preditores e relacionais na
explicação dos sintomas depressivos nos adolescentes. Foram averiguados os
pressupostos para a realização destas análises, sendo cumprido o critério do
tamanho da amostra e da ausência de multicolineridade (todas as variáveis
independentes apresentaram valores de tolerância superiores a 0,10 e VIF inferiores a 10) (Tabachnick & Fidell, 2007). Apesar de nem todas as
variáveis seguirem uma distribuição normal (o pressuposto de normalidade foi
analisado através do teste de Kolmogorov-Smirnov), os valores de assimetria e
achatamento não evidenciaram graves enviesamentos. Segundo Kline (2005), valores de assimetria |< 3| e de achatamento |<
10| são aceitáveis. A classificação das correlações seguiu a tipologia de
Pallant (2013), diferenciando correlação baixa (valores
de r entre 0,10 e 0,29), correlação
moderada (r entre 0,30 e 0,49) e
correlação elevada (r entre 0,50 e
1,0).
Recorreu-se à comparação dos valores médios obtidos no
T1 e T2, controlando o género masculino e feminino, com o objetivo de analisar a
evolução das varáveis em estudo (sintomas depressivos, vivências de vergonha e experiências
traumáticas).
Os valores médios relativos à estabilidade absoluta
das variáveis nos dois tempos de avaliação são apresentados na Tabela
1.
Da
leitura da Tabela 1, podemos constatar que a maioria das
variáveis apresenta uma estabilidade absoluta ao longo dos dois tempos de
observação, sendo apenas exceção a variável referente aos sentimentos de
vergonha, tendo, neste caso, os participantes indicado valores mais elevados de
vergonha no segundo momento, comparativamente ao T1.
|
TABELA 1 Valores
Médios obtidos em Função dos Tempos de Avaliação e Estabilidade Absoluta nos
Instrumentos de Medida |
|
|||||||
|
Tempo 1 |
|
Tempo 2 |
t
|
p |
|
|||
|
M |
DP |
|
M |
DP |
|
|||
|
CDI |
11,44 |
7,33 |
|
10,91 |
7,12 |
1,84 |
0,067 |
|
|
Masculino |
8,85 |
5,36 |
|
8,13 |
5,15 |
|
|
|
|
Feminino |
13,10 |
7,91 |
|
12,67 |
7,62 |
|
|
|
|
OAS |
17,58 |
15,35 |
|
17,83 |
15,43 |
-5,17 |
< 0,001 |
|
|
Masculino |
12,39 |
11,27 |
|
12,62 |
11,33 |
|
|
|
|
Feminino |
20,81 |
16,65 |
|
21,08 |
16,74 |
|
|
|
|
NegEmocional |
9,38 |
4,19 |
|
1,17 |
0,244 |
|
||
|
Masculino |
9,34 |
4,47 |
|
9,00 |
3,97 |
|
|
|
|
Feminino |
9,40 |
4,02 |
|
9,21 |
4,25 |
|
|
|
|
Abuso Afetivo |
6,72 |
2,72 |
|
6,48 |
2,75 |
1,75 |
0,081 |
|
|
Masculino |
6,30 |
1,90 |
|
6,22 |
2,44 |
|
|
|
|
Feminino |
6,98 |
3,10 |
|
6,65 |
2,92 |
|
|
|
|
Abuso Sexual |
5,35 |
1,70 |
|
5,33 |
1,73 |
0,11 |
0,910 |
|
|
Masculino |
5,23 |
0,82 |
|
5,22 |
1,27 |
|
|
|
|
Feminino |
5,42 |
2,07 |
|
5,41 |
1,96 |
|
|
|
|
Abuso Físico |
5,41 |
1,46 |
|
5,30 |
1,28 |
1,28 |
0,202 |
|
|
Masculino |
5,50 |
1,47 |
|
5,36 |
1,22 |
|
|
|
|
Feminino |
5,35 |
1,45 |
|
5,27 |
1,32 |
|
|
|
|
Nota. CDI = Childrens’s
Depression Inventory; OAS = Others
As Shamers; NegEmocional = Negligência emocional; M = Média; DP = Desvio Padrão; t =
t Student; p = nível de significância. |
|
O estudo que se segue procurou avaliar a relação entre os acontecimentos
de vida traumáticos (CTQ) e os sentimentos de vergonha (OAS) avaliados no tempo
1 e os sintomas depressivos (CDI) medidos no tempo 2 (Tabela 2).
De acordo com a Tabela 2, as variáveis vergonha e trauma
(T1) e a variável sintomas depressivos (T2) estão correlacionadas entre si de
forma significativa e positiva. Os sintomas depressivos apresentam uma
associação elevada com a vergonha, uma correlação moderada com o abuso afetivo
e fraca com a negligência emocional e abuso sexual.
|
TABELA 2 Correlação entre as Variáveis
Vergonha e Trauma, (Tempo 1) e a Variável Sintomas Depressivos (Tempo 2) |
|
|||||
|
1 |
2 |
3 |
4 |
5 |
|
|
|
1.
CDI (Tempo 2) |
— |
|
||||
|
2.
OAS |
0,75** |
— |
|
|||
|
3.
CTQ – Negligência Emocional |
0,31** |
0,26** |
— |
|
|
|
|
4.
CTQ – Abuso Afetivo |
0,47** |
0,42** |
0,41** |
— |
|
|
|
5.
CTQ – Abuso Sexual |
0,24** |
0,11* |
0,13* |
0,32** |
— |
|
|
6. CTQ – Abuso
Físico |
0,18** |
0,13* |
0,42** |
0,46** |
0,41** |
|
|
Nota. CDI = Childrens’s Depression Inventory; OAS = Others As Shamers;
CTQ = Childhood Trauma Questionnaire. * p < 0,05; ** p < 0,01. |
|
Por último, para compreender qual
o conjunto de variáveis que mais contribui para os predizer os sintomas
depressivos nos adolescentes, foi realizada uma análise de regressão linear
múltipla, utilizando as vivências de vergonha e os domínios das experiências
traumáticas (experiências de abuso físico, sexual e afetivo e de negligência
emocional) avaliadas no T1, como preditores (variáveis independentes) e os
sintomas depressivos avaliados no T2 como variável critério (variável
dependente).
Uma vez que o género mostrou uma associação significativa com os sintomas
depressivos, procurámos ainda controlar a variável género, fazendo-a entrar no
primeiro bloco da análise de regressão linear, depois de, previamente,
transformada numa variável dummy. No segundo bloco forçámos a entrada da
variável relativa às vivências de vergonha e no terceiro e último bloco,
fizemos entrar as variáveis relacionadas com o trauma (Tabela 3).
O primeiro bloco da função de regressão
contribuiu com 10% para o total da variância (R2 = 0,10), o segundo bloco contribuiu com 48,2% (R2= 0,58,) e o terceiro bloco
acrescentou 5% (R2 =0,63).
A função no seu conjunto, constituída
pelas vivências de vergonha, os acontecimentos traumáticos, nomeadamente abuso
afetivo, abuso sexual e negligência emocional, explicou 63% do total dos
sintomas depressivos, sendo um modelo preditor significativo.
Quando introduzidos os três blocos, o
valor de Beta mais elevado foi para a vivência de vergonha (b = 0,63; p < 0,001),
seguindo-se o abuso afetivo (b = 0,15; p = 0,001), o género (b = 0,12; p = 0,001), depois o
abuso sexual (b = 0,12; p = 0,002) e, por último,
a variável relativa à negligência emocional (b = 0,10; p = 0,013). Estes resultados indicaram que o fato de
pertencer ao sexo feminino, experienciar mais vivências de vergonha, e mais
experiências traumáticas de abuso afetivo, abuso sexual e de negligência
emocional permitem predizer mais sintomas depressivos na adolescência. Mesmo
depois de controlado o efeito do género e da vergonha, as experiências
traumáticas revelaram um efeito significativo e independente nos sintomas
depressivos.
Estudos longitudinais breves, que investigam a ocorrência
de determinados acontecimentos de vida, neste caso os acontecimentos
traumáticos e vivências de vergonha nos adolescentes, constituem uma boa
oportunidade para clarificar a psicopatologia depressiva precoce a qual pode
influenciar a longo prazo o funcionamento adaptativo do indivíduo. O presente
estudo pretendeu, assim, explorar de que forma diferentes tipos de
acontecimentos traumáticos ocorridos ao longo da infância e sentimentos de
vergonha estão associados a sintomas depressivos na adolescência avaliados em
dois tempos separados por seis meses.
Na globalidade, os resultados corroboraram a hipótese do
poder preditivo do trauma e da vergonha na evolução dos sintomas depressivos a
seis meses. Todas as variáveis em estudo mostraram uma estabilidade absoluta,
excluindo a vergonha externa, a qual evidenciou valores médios mais elevados no
T2. Mais estudos longitudinais são necessários para poder esclarecer este
resultado, já que até há data os estudos efetuados com adolescentes são ainda
escassos. De notar que a investigação sobre a relação entre a vergonha e a
idade tem sugerido um efeito significativo na transição para a idade adulta, e
não uma variação ao longo da adolescência (Cunha, Xavier,
Cherpe, & Pinto-Gouveia, 2017; De Rubeis &
Hollenstein, 2009; Tangney & Dearing, 2002).
Por sua vez, as variáveis associadas ao trauma e vergonha
no Tempo 1 mostraram-se associadas aos sintomas depressivos avaliados no Tempo
2 (6 meses depois). O mesmo é dizer que os nossos dados indicam que quanto
maior é o nível de acontecimentos traumáticos (sob a forma de experiências de
abuso afetivo, físico, sexual e de negligência emocional), maior é o receio de
existir na mente dos outros de forma negativa e maior é o nível de sintomas
depressivos aos 6 meses. Estudos sobre a adolescência valorizam esta fase como
sendo uma fase crítica, onde ocorrem sucessivas reorganizações qualitativas
dentro e entre sistemas biológico, emocional, cognitivo, comportamental e
social que dirigem e redirecionam o curso do desenvolvimento humano (Papalia, Olds, & Feldman, 2006). Estudos transversais
têm confirmado que a vergonha está associada positivamente com a depressão nos
jovens (Andrews, Qian, & Valentine, 2002; Åslund et al., 2007; Balsamo et al., 2015;
Cunha et al., 2012; Muris & Meesters,
2014). Por sua vez, crianças que sofreram vários episódios de
abuso/maltrato são mais suscetíveis a um maior risco de psicopatologia,
formando assim visões e respostas negativas que contribuem para o
desenvolvimento de esquemas depressivos (Mandelli et al.,
2015). Com efeito, os nossos resultados mostraram uma associação moderada
ao longo de seis meses entre o abuso afetivo e negligência emocional e os
sintomas depressivos. As dinâmicas da situação abusiva na infância,
especificamente na forma de abuso afetivo/emocional ou negligência emocional
têm sido progressivamente estudadas em pesquisas transversais e prospetivas,
indicando uma forte relação com desenvolvimento de depressão clínica na
adolescência, e subsequentemente, na vida adulta (Dunn,
McLaughlin, Slopen, Rosand, & Smoller, 2013; Infurna,
Rivers, Reich, & Zautra, 2015; Price, Higa-McMillan,
& Frueh, 2013). No entanto, a maior parte da investigação existente
enfatiza o abuso sexual (Bonanno et al., 2002; Mandelli et al., 2015; Musliner &
Singer, 2014) e o abuso físico como fator de risco para a depressão em
adultos (Infurna et al., 2015; Liu et
al., 2009). Contudo, na nossa investigação os resultados evidenciaram uma
associação baixa, salientando-se uma associação maior com as experiências de
abuso afetivo e de negligência emocional. A interpretação destes resultados
exige cautela e a necessidade de ter em conta o facto da presente amostra ser
da comunidade, e não uma amostra clínica ou mista, o que pode ajudar a explicar
algumas diferenças encontradas relativamente ao peso do tipo de experiências
traumáticas.
Por último, na análise do conjunto de variáveis que melhor
explica os sintomas depressivos nos adolescentes, os nossos resultados
mostraram um modelo preditor significativo constituído pelas vivências de
vergonha externa, pelos acontecimentos traumáticos, nomeadamente abuso afetivo,
abuso sexual e negligência emocional e pela variável género. Ou seja, receios
mais elevados de que os outros os vejam como incompetentes, defeituosos ou
inferiores e mais experiências adversas ocorridas na infância, nomeadamente de
abuso afetivo, abuso sexual e negligência emocional, bem como pertencer ao
género feminino predizem mais sintomas depressivos a seis meses. A vergonha
externa, isto é, a forma como os adolescentes percecionam que os outros os vêm,
mostrou-se o preditor mais forte, contribuindo com 48% da variância explicada.
Contudo, mesmo depois de controlado o efeito do género e da vergonha, as
experiências traumáticas têm ainda uma relação significante e independente com
os sintomas depressivos.
Estes resultados são confirmados pela literatura
internacional que analisou a relação entre os efeitos do abuso durante a
infância e os efeitos a médio e longo prazo, sendo esta moderada por diferentes
variáveis como o tipo de abuso, intensidade, duração e género (Infurna et al, 2015; Sousa et al., 2011).
De acordo com a investigação, os sentimentos de vergonha
estão relacionados com histórias de abuso e com várias formas de maus tratos
psicológicos (indiferença, rejeição, abandono, negligência por omissão às
necessidades básicas da criança) (Slep, Heyman, & Snarr,
2011; Szentágotai-Tătar et al., 2015),
bem como se têm mostrado preditores de sintomas depressivos (Gibb
et al., 2001). O género é também considerado, na maioria das investigações,
uma variável preditora de depressão, uma vez que, existem diferenças na
prevalência e manifestação de sintomas depressivos entre os rapazes e
raparigas, no início da adolescência (English, Widom, &
Brandford, 2004; Rosso et al., 2014). Por sua vez,
estudos longitudinais demonstram que a exposição a um único tipo de mau trato
ou a vários tipos está relacionada com o aumento da internalização e
externalização de comportamentos na infância e adolescência (Moylan
et al., 2010).
O facto de os nossos dados terem sido obtidos com recurso a
um desenho longitudinal e prospetivo vem reforçar a ideia que variáveis
preditoras (eventos traumáticos e vivências de vergonha) são importantes
antecedentes dos sintomas depressivos. Na verdade, o presente estudo pode
acrescentar informações que esclarecem a importância relativa de mecanismos
subjacentes à vulnerabilidade aos sintomas depressivos. Não obstante este ponto
forte, sofre de limitações diversas. A principal prende-se com a utilização
exclusiva da população geral, sendo importante estender a outra amostras
clínicas de adolescentes. Seria igualmente interessante recorrer a outras
formas de avaliação (por exemplo, entrevistas clínicas, medidas fisiológicas) e
outros informadores (e.g., familiares), ultrapassando, assim, a dependência
absoluta de questionários de autorrelato, dada o conhecido efeito da elevada
desejabilidade social nos adolescentes. Consideramos ainda crucial aumentar
momentos ao longo do tempo para recolha de dados e ver a estabilidade inter e
intraindividual.
Em síntese, a presente investigação contribuiu para a
importância de uma sinalização precoce nas crianças/adolescentes,
principalmente do sexo feminino, para iniciar uma intervenção preventiva e
interventiva dirigida a este tipo de experiências adversas que permitam
minimizar o seu impacto.
Conflito de interesses: Nenhum.
Fontes de financiamento: Nenhuma.
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ⓘ PhD. Contribuiu para a elaboração do desenho de
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a revisão do trabalho. Instituto Superior Miguel Torga, Coimbra, Portugal;
Centro de Investigação em Neuropsicologia e Intervenção
Cognitivo-comportamental (CINEICC), FPCE da Universidade de Coimbra; Portugal.
ⓘ PsyM. Contribuiu para a execução do trabalho e para a recolha e inserção
dos dados. Instituto Superior Miguel Torga, Coimbra, Portugal.
ⓘ PsyM. Contribuiu para a elaboração do desenho de
investigação, a definição de procedimentos e o acesso à amostra. Centro de Investigação
em Neuropsicologia e Intervenção Cognitivo-comportamental (CINEICC), FPCE da
Universidade de Coimbra; Portugal.
ⓘ PhD. Contribuiu para a revisão do trabalho. Instituto Superior Miguel
Torga, Coimbra, Portugal.
ⓘ PhD. Contribuiu para a revisão do trabalho. Instituto Superior Miguel
Torga, Coimbra, Portugal.